ISSN : 2992-7099

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Revista Tlatelolco, PUEDJS, UNAM
Vol. 2. Núm. 2, Enero – Junio 2024

Imperialismo na América Latina: Da onda rosa ao regresso conservador

Imperialism in Latin America: From the pink tide to the conservative return

Luiz Felipe Brandão Osório *
Thomaz Delgado De David **

Recibido: 23 de mayo de 2023 | Aceptado: 2 de agosto de 2023

* Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Professor de Relações Internacionais e Vice-Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFRRJ. É autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, publicado pela editora Ideias & Letras em 2018. E-mail: luizfelipe.osorio@gmail.com. ORCID:  https://orcid.org/0000-0001-6058-7809.

** Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Coordenador da RedeMarx – Rede de Pesquisadores Marxistas, registrada no CNPq/Brasil. E-mail: thomaz_delgado@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8402-0989.

Resumo

A América Latina experimentou na virada do século um período de progressismo inédito em sua história. Ele marcou não apenas uma nova etapa no desenvolvimento dos países, mas serviu de modelo para outras experiências mundo afora. Para uma região inserida na periferia do sistema internacional, em meio à incessante concorrência, o impulso logo começou a ser ceifado pelas potências internacionais, principalmente os Estados Unidos, que patrocinaram direta ou indiretamente a reversão dessa onda por meio do retorno do neoliberalismo ou pela fraude ou pela força. Os mecanismos utilizados e toda a dinâmica envolvida estão imersos dentro do panorama do imperialismo contemporâneo, que é um fator determinante para a explicação dos ciclos e da instabilidade política local. Nesse sentido, partindo de uma compreensão do materialismo histórico e dialético das relações internacionais, este artigo objetiva demonstrar a influência do imperialismo no processo de retrocesso democrático na região, considerando a inserção do continente no sistema capitalista de Estados e a trajetória do capitalismo em âmbito mundial até os dias atuais. Por isso, o trabalho será dividido em três partes: um panorama político regional; a discussão do cenário internacional; e os desdobramentos da expressão hodierna do imperialismo.

Palavras chave:

imperialismo, sistema internacional, América Latina, periferia.

Abstract

At the turn of the century, Latin America experienced a period of unprecedented progressivism in its history. It marked not only a new stage in its development, but served as a model for other experiences around the world. For a region on the periphery of the international system, amid incessant competition, the impulse soon began to be reaped by international powers, mainly the United States, which directly or indirectly sponsored the reversal of this wave through the return of neoliberalism or through fraud or by force. The mechanisms used and all the dynamics involved are immersed within the panorama of contemporary imperialism, which is a determining factor in explaining the cycles and local political instability. In this sense, starting from an understanding of historical materialism and the dialectic of international relations, this article aims to demonstrate the influence of imperialism in the process of democratic regression in the region, considering the insertion of the continent in the capitalist system of States and the trajectory of capitalism worldwide until nowadays. Therefore, the work will be divided into three parts, a regional political panorama, the discussion of the international scenario and the developments of the current expression of imperialism.

Keywords:

imperialism, international system, Latin America, periphery.

Sumário:

1. Introdução

A tarefa de caracterizar o atual momento político da América Latina mostra-se cada vez mais difícil. Principalmente, se pegarmos os anos mais recentes. O continente viveu sob infindáveis anos de dominação de suas elites, representadas pelos partidos da chamada direita tradicional, a despeito de alguns períodos específicos de progressismo. Ainda que se possa constatar uma predominância política da direita, há que se ressaltar que ela não foi estável. Pelo contrário, a história política da região é atravessada por golpes e câmbios nos variados regimes, a ponto, inclusive, das transições democráticas se constituírem, em geral, na exceção.

De pronto, dois elementos podem ser apontados. O primeiro envolve a insustentabilidade no plano prático de governos que representam o interesse de uma minoria e que praticam uma política excludente. Nesse sentido, os atritos e o esgarçamento do tecido social decorrente amplificam ainda mais a instabilidade. O segundo é o fator externo. Fundamentalmente, a história da América Latina não pode ser contada sem considerar, primeiramente, o papel da colonização europeia, e, posteriormente, a influência dos Estados Unidos. Ambos os elementos ocupam posições relevantes em toda análise política. Para este texto, no entanto, será destacada a vertente externa.

E não exatamente os Estados Unidos em si e sua postura perante a América Latina, mas, sim, o foco aqui será o quadro mais atual de mudanças políticas na região a partir da inserção latino-americana no sistema capitalista de Estados como periferia. O que se constata imediatamente nessa mirada histórica é que até a percepção e a aplicação do que é democracia, pelo ponto de vista da garantia institucional e de direitos, é completamente diferente a depender da região, ou seja, se faz presente também a clivagem entre centro e periferia, e o imperialismo é central nessa divisão. Com isso, serão discutidos sucintamente alguns aspectos teóricos e históricos sobre o conceito de imperialismo na atualidade, destacando, essencialmente, o ano de 1998 em diante, com a chegada de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, retomando o nacionalismo e o desenvolvimentismo latino-americano. 

Dali em diante, as esquerdas chegam ao poder na região pela via institucional. Apesar dos governos moderados, de composição com setores da direita e de uma direção muito mais nacionalista do que diretamente voltada à revolução socialista, o momento foi de inflexão na história local. Tanto que a instabilidade política não apenas se manteve, mas até aumentou, a ponto de hoje até falarmos da reversão da guinada à esquerda.

2. Hipótese

A quais fatores se devem as trocas de governo recentes na América Latina? Desde o processo de independência, a prevalência da democracia foi um acontecimento raro nas nações ao sul dos Estados Unidos. A história da América Latina é a dos golpes, sendo exceções os períodos de transição democrática. A que isso se deve? Para além de importantes questões internas, o fundamental é apontar o papel do imperialismo de interferência direta na dinâmica das relações internacionais, na qual a América Latina ocupa a posição de periferia. Dessa forma, a hipótese deste trabalho propõe que:

  1. a) Os câmbios políticos na América Latina, da onda rosa ao regresso conservador, demonstram a substituição de uma tendência de cunho regional nacional-desenvolvimentista por diretrizes neoliberais e antidemocráticas.
  2. b) A reconfiguração do imperialismo na América Latina durante o século XXI decorre da rearticulação de seus próprios mecanismos econômicos e extraeconômicos de dominação; 
  3. c) A dinâmica do imperialismo foi impactada diretamente pela onda conservadora, que consolidou o regime de acumulação e o modo de regulação pós-fordistas na região.

3. Metodologia

Em termos metodológicos, emprega-se o método de abordagem materialista histórico-dialético, em consonância com a matriz teórica marxista que fundamenta este trabalho. Para Netto (2011), a dialética materialista, resumidamente, é “o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, [e que] visa alcançar a essência do objeto”. Tratando-se de essência (aquilo que é) e aparência (aquilo que parece ser), é possível se afastar de uma perspectiva da economia política internacional pautada, primordialmente, pela cooperação e pelos benefícios mútuos. Torna-se factível, assim, avaliá-la de acordo com aquilo que ela, fundamentalmente, é: um âmbito de reprodução das relações capitalistas globalizadas, marcado pelo imperialismo.

 Ademais, conforme Callinicos (2004, p. 40, tradução nossa), “o materialismo histórico pode ser observado como uma afirmação distintiva sobre os tipos de estruturas que têm primazia na explicação dos sistemas sociais”. Assim, pode-se conceber a política e a economia na América Latina dentro de um sistema capitalista global, estruturado sob condições concretas de desigualdade entre Estados e que opera a partir de relações de dominação e dependência.

Por seu turno, o método de procedimento histórico está presente no desenvolvimento do trabalho, apesar do enfoque no século XXI. Isto, pois, os acontecimentos das últimas décadas são analisados de acordo com as condições e contradições que historicamente marcam a economia política global e latino-americana. 

Ainda, empregou-se a técnica de pesquisa documental indireta, tendo a pesquisa bibliográfica como meio de embasamento, a partir do desenvolvimento científico existente.

4. Desenvolvimento da reflexão

4.1 Panorama dos recentes câmbios políticos na América Latina

Historicamente, a América Latina tem experimentado tendências políticas que afetam conjuntamente os países que a compõem. O marco inicial dessa história de raízes europeias é a colonização. Todo o processo de chegada, ocupação e exploração das Américas desempenhou papel determinante na consolidação e expansão do poderio europeu pelo mundo. Ciente desse embasamento, cabe destacar que o sistema internacional somente começa a ganhar as configurações mais atuais e conhecidas a partir de meados do século XIX até o século XX. No tocante aos países latino-americanos, com o êxito dos processos de independência política e sua inserção gradativa enquanto Estados-nação autônomos. Então, a fragmentação territorial decorrente do reconhecimento da autonomia vai constituindo nações distintas, mas com uma trajetória muito semelhante em termos de relações internacionais, a qual vai oscilando a depender das transformações do sistema internacional.

Essa leitura é carreada pelo método materialista histórico e dialético que sistematiza o decorrer da história a partir da organização social da produção e de suas relações concretas consequentes. Em outras palavras, a narrativa da trajetória internacional desdobra-se conforme o modo de produção histórico predominante à época, responsável pela organização dos espaços em nações, das forças produtivas e das relações de produção, estruturando as formações sociais e estabelecendo procedimentos, protocolos, regras e práticas comuns que viabilizam as interações com os pares. O que se chama de internacional aqui e vai ganhando o mundo é a dinâmica construída a partir da Europa, pois em razão de sua dianteira no processo de expansão nesses moldes, ali estão fincadas as raízes sobre as quais estruturamos nossa forma de pensar e agir. 

Logo, é fundamental falar do contexto de chegada dos europeus à América. Na Idade Moderna, do século XV aos estertores do XVIII, verificou-se um período de transição e de interposição de diferentes modos de produção, notabilizada pela ascendência dos reinos ibéricos e gradativo crescimento dos britânicos. Não é possível identificar um modo de produção específico, mas formas que combinam o velho (escravismo e feudalismo) com o novo (capitalismo). O mercantilismo, a acumulação de ouro e prata pelas respectivas casas dinásticas, fomentando a concorrência; o absolutismo (mescla de imposição divina e razão individual); e o colonialismo (domínio e conquista dos territórios pelo globo sob o signo das nações) são evidências próprias desse interregno. Contudo, é só na Idade Contemporânea, com o advento do capitalismo, que tem como pontos de inflexão a Revolução Industrial na Inglaterra e as Revoluções Burguesas nos Estados Unidos e na França, ao final do século XVIII e na aurora do XIX, que o sistema capitalista de Estados começa a ser constituído.

Os países da América Latina começam sua história enquanto Estado-nação dentro dessa dinâmica com os processos de descolonização, que fragmentam o continente em vários territórios autônomos, com governos distintos, em um modelo distinto da Pátria Grande, mas afeito à configuração mundial sob influência da Inglaterra. Não fortuitamente o país europeu vai participar das negociações pelo reconhecimento das novas nações, além de forçar conflitos e mais segregação entre elas, além, claro, de exercer seu poderio principalmente com investimentos e uma enxurrada de capitais na porção meridional americana.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos também marcaram sua presença ao Sul, seja inicialmente na inspiração dos movimentos progressistas de independência, considerando seu êxito perante a Inglaterra, seja para estreitar os laços de um pan-americanismo, de maneira a afastar a força das ex-colônias na região. O que acontece, assim, principalmente com a Segunda Guerra Mundial, é a mudança de dominância que passa ao controle dos Estados Unidos. O pós-1945 é o momento evidente desse câmbio. Abriram-se janelas de oportunidades com a vitória da União Soviética e das esquerdas no mundo dentro dos marcos do capitalismo, o que levou à América Latina a tocar de forma mais consistente seu processo de industrialização. O qual não foi longevo, mas, sim, interrompido pelos Estados Unidos assim que os ecos da revolução passaram a ressoar no continente.

Assim, vieram os regimes autoritários e os golpes que permearam a década de 1950 em diante. Com isso, o desenvolvimentismo é gradativamente substituído pelas experiências de neoliberalismo, em um laboratório latino-americano que nos anos 1990 irá se alastrar pelo globo. O padrão neoliberal de desenvolvimento foi inaugurado na região durante a década de 1970 (no Chile, na Argentina e no Uruguai) e expandiu-se ao longo da década seguinte. Na década de 1990, com o Consenso de Washington (1989), o neoliberalismo tornou-se hegemônico e influenciou significativamente os rumos da política na América Latina (Martins, 2011). As diretrizes eram: disciplina fiscal, reordenação das prioridades das despesas públicas, reforma tributária, liberalização das taxas de juros, taxa de câmbio competitiva, liberalização do comércio, liberalização do investimento estrangeiro direto interno, privatização, desregulação e direitos de propriedade (Williamson, 2009).

Todavia, essas brumas de modernização não tardaram para ser dissipadas. O próprio povo tratou de rechaçar as ilusões trazidas do Norte. Um dos indícios principais disso é a duração efêmera de uma década de apogeu neoliberal. Já em 1998, na Venezuela, vem a ascensão de Chávez ao poder, demonstrando a falácia dessas concepções. Logo, em contraposição, o século XXI foi inaugurado com uma ascensão tendencial de chefes de Estado de esquerda e centro-esquerda na região e a reversão desse panorama, em termos gerais (Levistsky e Roberts, 2011). A virada marcou um período de decadência do neoliberalismo, com o surgimento de novas formas de nacionalismo, marcadas pela forte mobilização e organização popular e por um capitalismo de Estado.

Em outras palavras, impôs-se um bloco de resistência ao neoliberalismo, que defendeu a autonomia da região e de seus países e se apresentou ao mundo como modelo alternativo de política, trazendo incômodos aos Estados Unidos. Tanto que a reversão dessas experiências começa a partir de golpes de Estado ou de manipulações do processo eleitoral pelas direitas, uma vez que o neoliberalismo já não tinha mais força popular para poder se impor pelo voto. As vitórias eleitorais desse bloco de centro-esquerda ocorreram até 2014, quando os resultados apertados e o contexto social já demonstravam evidentes sinais de esgotamento. Após, em 2015, houve a eleição de Mauricio Macri para a Presidência da Argentina e, em 2016, o golpe de Estado que destituiu Dilma Rousseff da Presidência do Brasil. O fenômeno descrito, de forma geral, foi denominado onda rosa (1998-2016), principalmente pela mídia dominante.

A onda rosa trouxe consigo consideráveis avanços em indicadores sociais, importando em um balanço positivo do período nos países que atingiu, os quais apontaram para uma redução significativa da pobreza e da indigência da população urbana, com ênfase em países como Argentina, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Além disso, a redução da desigualdade, de acordo com o Índice de Gini, apesar de mais lenta, foi quase constante em todos os países atingidos pela onda rosa (Silva, 2015).

No entanto, a reversão desse ciclo começa a dar sinais com o golpe de Estado em Honduras, em 2009, quando gradativamente os regimes políticos começam a sofrer mais uma expressiva mudança. Todos, exitosos ou não, com a presença dos Estados Unidos, manipulando e incentivando, o retorno das direitas tradicionais ou mesmo da extrema direita. Foram utilizados expedientes como pressão política sobre os governos, como a atuação Organização dos Estados Americanos (OEA) nas eleições na Bolívia; espionagem em empresas nacionais, como na Petrobrás no Brasil; sabotagem, como o reconhecimento de outro governo na Venezuela e tentativas de intervenção direta; manipulação, como as ações de desestabilização na derrubado do governo Lugo; agravamento da submissão financeira, como os empréstimos adquiridos no Fundo Monetário Internacional (FMI) pela Argentina do governo Macri; dentre outros aspectos. Assim, se compararmos à onda rosa, podemos dizer que veio a ressaca da direita e da extrema-direita na região (desde 2009), deixando o contexto ainda mais conturbado.

O que se percebe, contudo, é que a revisão não foi total, mas parcial, com fundamentais manutenções do poder em alguns países. Ainda assim, trata-se de um fenômeno que, em algum momento, atingiu diretamente a maioria dos países da região, incluindo Argentina e Brasil, as duas maiores economias da América do Sul. Da onda rosa à ressaca conservadora, modelos progressistas cedem espaço às diretrizes neoliberais, que voltam a predominar na região, agora, pela força, haja vista a perda do apoio popular da década de 1990. Logo, testemunhamos ou a violência da extrema direita ou a utilização pela direita dos mecanismos institucionais de exceção, como leis marciais, processos sucessivos de impeachment e fechamento de Congresso.

 

4.1.1 O contexto internacional

Todo esse movimento de avanços e retrocessos na América Latina precisa ser situado dentro da tendência global. A década de 1990 trouxe a consolidação do neoliberalismo, sobrepondo-se à crise do fordismo que vinha se arrastando desde a década de 1970. A nova organização social que emergia, rompendo com os parâmetros fordistas, pode ser cunhada como pós-fordista, por constituir um momento de reação, de desfazimento da correlação de outrora. Aqui, diferentemente do que ocorreu no período anterior, não há uma denominação específica ligada ao modo de organização da produção. Na verdade, a alcunha advém da negação das premissas dadas que foi a saída à crise do fordismo. Logo, o pós-fordismo é uma desconstrução e, simultaneamente, reconstrução dos parâmetros capitalistas. Apesar dos efeitos críticos terem sido sentidos desde, pelo menos, a década de 1970, é a partir do final da Guerra Fria, na aurora da década de 1990, com a dissolução das experiências socialistas no Leste Europeu, que o ciclo pós-fordista se sedimenta. Isso porque esse período marca a consolidação e difusão pelo mundo do novo regime de acumulação e do respectivo modo de regulação que teceram a nova face do padrão de desenvolvimento do capitalismo.

Como modelo reativo, as características embasam-se na superação das peculiaridades fordistas (Hirsch, 2010). O taylorismo da organização do trabalho sucumbe ao toyotismo na produção, ou seja, a racionalização do uso da força de trabalho, o crescimento da automação e da desconcentração industrial. As transformações no regime de acumulação vão nesse sentido. Pode-se cravar que, fundamentalmente, houve um deslocamento do eixo central que antes gravitava em torno do mercado interno e, agora, passa a conectar-se ao mercado internacional (Mascaro, 2013). Leia-se: defesa da liberalização das regras e abertura das economias para o livre trânsito dos capitais, expandindo sua esfera de valorização por sobre e além dos territórios nacionais. Pressionando por essa dinâmica, vêm as novas tecnologias (como transportes, comunicação, biotecnologia e genética), que alteram significativamente a relação entre tempo e espaço, por exemplo. Na esteira desse processo, quebra-se a relação entre crescimento e aumento do consumo, levando à estagnação ou ao retrocesso da renda real. O descolamento desses mecanismos permite que a valorização dos capitais seja menos dependente das questões de renda salarial, o que impacta fulminantemente nas relações trabalhistas. A precarização (via terceirização, privatização e outras formas de flexibilização) e a informalidade da relação trabalhista e salarial caracterizam-se como as tendências atuais. Ao lado do enfraquecimento do trabalho, caminham a intensificação da financeirização das relações econômicas em meio à desregulação dos mercados e a liberalização dos fluxos de mercadorias e de capitais, acirrando a concorrência oligopolista. 

Nessa toada, a lição fundamental é saber livrar-se da armadilha da globalização. Não é ela que marca o novo regime de acumulação. O capital, em sua essência, é internacional, é inexoravelmente expansivo, global. O diferencial desse momento é a verve se que manifestou da internacionalização da produção. Por meio da liberalização dos fluxos comerciais, do fim das amarras financeiras, da livre circulação dos capitais e da introdução de novas tecnologias de comunicação e transporte criou-se uma rede ampla e flexível de possibilidades de valorização do valor, mais independentes das demandas do trabalho. O capitalismo é essencialmente, portanto, desde sempre, globalizado, no sentido de pressionar pela internacionalização da produção. O que diferencia o padrão pós-fordista de desenvolvimento são as condições estruturais dadas, de acumulação e regulação (Boyer, 1990).  

O modelo de bem-estar social (welfare) passou à desregulamentação e à precarização das condições de vida, gerando o estado de guerra econômica do livre mercado (warfare). A flexibilização das regras alterou a relação entre as empresas e os Estados nacionais, a qual se configura em moldes bem menos protetivos. A mitigação da intervenção nacional-estatal nas relações de produção deixou as políticas sociais e econômicas mais vulneráveis às oscilações internacionais. A postura dos governos se tornou muito mais defensiva aos efeitos do mercado do que propositiva, cabendo aos contrários apenas resistir e sem a capacidade de realizar substanciais transformações. Nesse sentido, pode-se dizer que o neoliberalismo conferiu os tons da regulação.

Diferentemente do conhecimento vulgar difundido nos quatro cantos do globo, o neoliberalismo não significa a retirada do Estado dos campos de intervenção. Criou-se uma falaciosa e ilusória oposição entre Estado e mercado que é plenamente incompatível com a dinâmica do capitalismo. O capitalismo tem no Estado a mola central de sua engrenagem. Em verdade, o que ocorre é o redirecionamento do aparato estatal para outras prioridades e áreas de atuação. Neoliberalismo não é a política do capital contra o Estado, mas a política dos capitais passando necessariamente pelo Estado. 

Em outras palavras, o Estado é um vetor privilegiado e fomentador dessas transformações. “O pós-fordismo não é a reprodução econômica capitalista pelas costas dos Estados nacionais, mas, sim, um específico arranjo do capital permeado necessariamente pela forma política estatal” (Mascaro, 2013, p. 125). Pela intervenção ou, mesmo, pela omissão, o conflito distributivo e as desigualdades sociais acirraram-se. A repressão às políticas e às culturas discordantes do processo liberalizante elevaram-se. Os sistemas de seguridade social foram reduzidos e/ou privatizados. O consumismo voltou-se para as novas tecnologias recém-chegadas e produtos descartáveis. Aumentaram a xenofobia e o controle político da imigração. As lutas sociais e os movimentos coletivos foram esvaziados (Hirsch, 2010). Os valores estritamente político-econômicos passaram a dividir espaços, quando não sobrepostos, com novas bandeiras. Partidos de orientação monetarista capitalizaram os fracassos das reformas social-democratas e chegaram ao poder com o generoso suporte das grandes firmas privadas. A esquerda partidária, por sua vez, quedou-se imobilizada e sem referências ideológicas e políticas, a não ser o vislumbre da gerência do capitalismo como alternativa única. 

Mirando na crítica à capacidade cada vez mais limitada do Estado de intervir nas crescentes mazelas sociais, a extrema direita consolida-se como alternativa pelo mundo. Na última década, esse fenômeno é marcado por movimentos reacionários de massa como os que elegeram o Presidente Donald Trump nos EUA (2017-2021), que levaram a candidata Marine Le Penn ao segundo turno das eleições presidenciais na França (2017 e 2022) e que sustentam partidos como o FPÖ na Áustria, o VlamsBelang na Bélgica e a Lega na Itália. Na América Latina, associa-se com alguns setores e movimentos bastante heterogêneos que apoiaram o golpe no Paraguai (2012), no Brasil (2016), na Bolívia (2019) e a tentativa de golpe na Venezuela (2019), bem como a ascensão de Jair Bolsonaro.

À vista do exposto, nota-se que há uma tentativa de reversão do progressista latino-americana a partir de um retorno ao neoliberalismo seja pelas vestes institucionais, com a direita tradicional, seja pela força com a extrema direita, configurando uma tendência política regional, inserida, por sua vez, dentro dos desdobramentos globais. Em síntese, o regresso conservador se associa ao neoliberalismo e seus resultados, bem como à ascensão da extrema-direita na América Latina. 

 

4.1.2 O papel do imperialismo

Nessa dinâmica, há que se destacar o papel do imperialismo. Considerando as teorias marxistas sobre o tema que o tratam como a forma política do internacional no capitalismo, ou seja, o imperialismo é como o internacional se estrutura e se organiza a partir basicamente do século XIX em diante, ele acompanha as transformações do capitalismo em âmbito mundial, também se reconfigurando em novas práticas e expressões. O contexto atual, aqui debatido, é o do imperialismo pós-fordista.

Em outras palavras, isso significa, principalmente, que o capitalismo passa a intensificar sua tendência essencial de internacionalização das relações de produção, expandindo-se, agora, para além dos espaços territoriais, para também os imateriais. Nesse sentido,  David Harvey e Ellen Wood trazem contribuições relevantes ao tema. 

Para Harvey (2014), o imperialismo sob o capitalismo é marcado pela predominância de uma lógica tipicamente capitalista, diferente da lógica territorial que vinha em primeiro plano nas concepções anteriores de império. Nota-se que, ao tratar de predominância, resta claro que as lógicas capitalista e territorial coexistem e relacionam-se. Com base no conceito de lógica capitalista, expressa-se o aspecto econômico da acumulação e da reprodução do capital, que se associa com a dominação geopolítica e que, portanto, segue também uma lógica territorial no âmbito global. 

Em sentido semelhante, Wood (2014) assinala que o imperialismo capitalista não é marcado pela colonização direta, como ocorreu com o Império Britânico, mas pela presença de mecanismos econômicos (capitalistas) de dominação. Isso ocorre mesmo que esses mecanismos estejam, por sua vez, associados a mecanismos extraeconômicos. Nos termos da própria autora, “o que torna a dominação de classe, ou imperialismo, especificamente capitalista é a predominância da coerção econômica, que se distingue da coerção ‘extraeconômica’ – política, militar ou judicial – direta” (Wood, 2014, p. 17).

No cenário da tentativa de retorno conservador, os mecanismos extraeconômicos do imperialismo se relacionam com a ocorrência dos golpes já referidos. Cabe destacar que esses golpes ocorreram com significativa influência dos EUA e mediante o emprego de novas táticas de desestabilização da periferia global, que caracterizam as chamadas guerras híbridas.

Por sua vez, os mecanismos econômicos do imperialismo, tipicamente capitalistas, se relacionam com a maximização dos ganhos e do caráter internacional do regime de acumulação capitalista pós-fordista. Isto, pois, a implementação de diretrizes macroeconômicas neoliberais em países latino-americanos potencializa sua exploração pelo centro global. Além disso, cabe mencionar que neoliberalismo, que é o programa político que amplia a abertura das economias dependentes ao capital imperialista, e fascismo [...] não são, ao contrário do que afirmam alguns autores, fenômenos excludentes (Boito, 2020).

Ademais, ao tratar dessa lógica predominantemente econômica do imperialismo, Harvey remete a uma espécie de acumulação primitiva contemporânea, isto é, o imperialismo da acumulação por espoliação. Essa modalidade se resume na liberação de meios de produção a baixo custo, para emprego do capital sobreacumulado e geração de lucro. Nesse sentido, Harvey (2014, p. 124) aponta que “se o capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica de sobreacumulação desde 1973, então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema”. 

Portanto, esse novo imperialismo, marcado pela espoliação, objetiva mercantilizar aquilo que não está totalmente submetido à lógica mercantil capitalista (Harvey, 2014). Considerando-se a vasta riqueza natural latino-americana e o contexto da onda conservadora, a acumulação por espoliação encontrou um cenário ideal para a sua ocorrência. 

Casos paradigmáticos dessa acumulação por espoliação que abrangem a América Latina envolvem o neoextrativismo mineral, como a exploração de ferro, cobre, bauxita, nióbio, níquel e ouro no Brasil, Peru, Argentina e Chile (Gonçalves, 2016); a estrangeirização de terras, como vem ocorrendo na Bolívia, Brasil, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Costa Rica, Nicarágua, Panamá e República Dominicana (Baquero, Gómez, 2013); e a mercantilização da água, como recentemente vem se manifestando em países como Argentina, Bolívia, Brasil, El Salvador e México (Irigaray, 2016). Além disso, a dependência financeira diante do FMI e do Banco Mundial e a privatização de setores estratégicos se somam à dinâmica dos mecanismos econômicos de dominação imperialista. Portanto, o imperialismo, através de uma rearticulação de seus mecanismos econômicos, como especulação financeira, empréstimos em organismos internacionais, sanções, bloqueio de vias comerciais e corte de investimentos, e extraeconômicos, como pressão política, interferência em assuntos internos e em resultados eleitorais, pressão e perseguição judiciária, manobras militares e acirramento das tensões, se relacionou com o processo de golpes e de guinada neoliberal na América Latina. 

Esse realinhamento decorre dos golpes ocorridos, possibilitados pela forte ofensiva dos mecanismos extraeconômicos de dominação do imperialismo, sobretudo estadunidenses. Tendo governos latino-americanos realinhados à Washington, os mecanismos econômicos do imperialismo aproveitam-se das diretrizes neoliberais de abertura ao capital estrangeiro para maximizar os ganhos do centro global; em seguida, retrocessos democráticos ocorrem como resultado de um Estado a serviço dos interesses econômicos dominantes, que adota medidas de austeridade fiscal, comprometendo a efetivação de direitos sociais, bem como privatiza bens e serviços públicos, como setores estratégicos que podem até mesmo comprometer a soberania nacional.

Em síntese, a ofensiva aos ditames democráticos que veio carreada pela onda conservadora se relaciona com o imperialismo através de: a) mecanismos extraeconômicos: os quais contribuem e se aproveitam do estabelecimento, através de golpes ou pela via eleitoral, de regimes políticos antidemocráticos e que se aproximam de práticas e valores de inspiração ou de caráter autoritário; b) mecanismos econômicos: pela implementação de políticas econômicas neoliberais na região, que acentuam o regime de acumulação pós-fordista e resultam em um Estado mínimo para a sociedade e máximo para a reprodução do capital estrangeiro.

Assim, imperialismo e os abalos à democracia constituem a onda conservadora e, ao mesmo tempo, se retroalimentam através dela.

5. Conclusão

Diante do exposto, percebe-se que a história da América Latina enquanto periferia do sistema capitalista de Estados vai se desdobrando em blocos, guardando muitas semelhanças aos países de modo geral, ou seja, há uma dinâmica regional evidente. Dentre os fatores que nela impactam, está fundamentalmente o imperialismo, enquanto elemento constituidor desse panorama, o qual não é exatamente externo, mas inerente a essa dinâmica. Assim, ao longo do século XXI, acompanhando as transformações do capitalismo global, o imperialismo passou por reconfigurações e, consequentemente, também nosso continente. As mutações envolvem, entre outros aspectos, novas formas de exploração econômica sob o padrão de desenvolvimento pós-fordista, uma tendência global, e novos meios de desestabilização da periferia global, a partir da intensificação do fenômeno da internacionalização das relações de produção.

De modo geral, verificou-se que o imperialismo se desdobra por meio de uma conjugação entre mecanismos econômicos e extraeconômicos de dominação, complementares entre si. Da onda rosa à sua reversão conservadora, esses prismas foram rearticulados, ensejando um estudo aprofundado de sua dinâmica contemporânea. Sob o signo do retrocesso, a análise dos mecanismos extraeconômicos possibilita uma compreensão acerca da ocorrência dos golpes, da escalada de regimes antidemocráticos, assim como do realinhamento político dos países latino-americanos aos Estados Unidos na esfera internacional. Ainda, uma vez efetuado o realinhamento, esses mecanismos influenciam no controle, mesmo que de maneira relativa, não absoluta, das esferas institucionais e políticas desses países, pavimentando terreno para o retorno ainda mais danoso das diretrizes macroeconômicas neoliberais e acentuando o padrão de desenvolvimento capitalista vigente.

Em suma, desde a constituição da América Latina enquanto uma pluralidade de Estados-nação formalmente independentes dentro do sistema capitalista internacional, na condição de periferia, a forma política como o internacional se organiza, o imperialismo, impacta determinantemente nos rumos da região, principalmente, no tocante à instabilidade política, nas escolhas democráticas e nas limitações das mais variadas searas que se impõe ao crescimento, ao desenvolvimento e às possibilidades de mudança dentro do continente.

Referências

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