ISSN : 2992-7099

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Revista Tlatelolco, PUEDJS, UNAM
Vol. 2. Núm. 2, Enero – Junio 2024

Conjuntura político-religiosa na Colômbia e no Brasil

Political-religious clashes: Colombia and Brazil

Nayive Castellanos Villamil

Recibido: 13 de julio de 2023 | Aceptado: 25 de agosto de 2023

DOI-0

Doutoranda no programa de pós-graduação em Integração da América Latina-PROLAM da Universidade de São Paulo-USP.  Estância “sanduíche” na Universidade Nacional Autônoma de México, UNAM, 2023-I. Mestre em Estudos Político pela Universidade Nacional de Colômbia. Graduada em Relações Econômicas Internacionais e Licenciada em Ciências Sociais. Email: nayive.castellanos@usp.br  ORCID: 0000-0002-9320-682X

Resumo

O fortalecimento da extrema direita a escala mundial significa um desafio nas análises conjunturais, desde diversos campos do conhecimento, dadas suas multifacetadas apresentações e alcances. Um dos tentáculos desse extremismo o configura a direita cristã neoconservadora, que em interface com grupos econômicos e políticos conseguiu articular-se para engrenar estratégias, narrativas e contrapontos perante toda e qualquer forma de sociabilidade diferente à pautada por esses grupos. Colômbia e Brasil põem sua cota nesses assuntos com diversas tonalidades. Este texto propõe-se esboçar algumas características do contexto político-econômico, como contraste de ambos países, para introduzir sua atual fase de ativismo político-evangélico, a qual difere em nível de desenvolvimento.

Palavras chave:

Ativismo evangélico; Neoliberalismo; Presidenciais 2022; Colômbia; Brasil

Abstract

The strengthening of the extreme right on a world scale means a challenge in conjunctural analysis, from different fields of knowledge, given its multifaceted presentations and scope. One of the tentacles of this extremism is the neoconservative Christian right, which, in interface with economic and political groups, managed to articulate itself to mesh strategies, narratives and counterpoints in the face of any and all forms of sociability different from those guided by these groups. Colombia and Brazil put their share of these issues in different shades. This text proposes to outline some characteristics of the political-economic context, as a contrast of both countries, to introduce their current phase of political-evangelical activism, which differs in level of development.

Keywords:

Evangelical activism; Neoliberalism; Presidential 2022; Colombia; Brazil

Sumário:

1. Introdução

Nos últimos anos, a extrema direita vem sinalizando seu fortalecimento e suas diversas formas de manifestação mediante seu reposicionamento em instâncias executivas, legislativas, judiciárias, bem como em vários campos sociais. A globalização capitalista neoliberal, o ativismo de segmentos religiosos conservadores, o desprezo pela diferença, o acirramento na política partidária e as ferrenhas disputas em torno da moralidade pública contornam a conjuntura e os desafios que enfrentam as democracias contemporâneas. 

A mobilização de grupos extremistas se desenvolve num contexto de enraizamento do neoliberalismo, de crises econômicas, de disputas pelo reconhecimento (democratização de direitos) e da junção de históricas demandas redistributivas, somadas a outras mais recentes em termos identitários e culturais, que superam o eufemismo de serem apenas um efeito colateral das crises econômicas. Apesar da heterogeneidade dessa direita, na América Latina identifica-se um acentuado interesse na defesa de pautas morais, acompanhadas da defesa do autoritarismo, da repressão policial, da minimização do Estado, do antiesquerdismo, da difusão de narrativas tais como o “castro-chavismo”, o “marxismo cultural”, e as chamadas “ideologias de gênero” e a “ditadura gay”.  

Dentro desse extremismo, a direita cristã representa um dos principais agentes do atual panorama político, que tem como cerne a regulação dos corpos e a defesa dos costumes (Lacerda, 2019). O que a literatura recente chama de nova configuração do conservadorismo ou de neoconservadorismo articulou discursos antigênero e de ressignificação dos direitos humanos, como dispositivos para promover racionalidades políticas neoconservadoras orientadas por diferentes moralidades e acentuadas pelo neoliberalismo (Biroli, F., Vaggione, J. y Machado, M., 2020). 

O conservadorismo religioso, que desembocou no neoconservadorismo, acentuou os embates morais que caracterizam a extrema direita cristã. A moralidade normativa apresenta-se como um dos recursos de agitação e de reação contra as conquistas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ que buscam a democratização de direitos de grupos não normativos. A disputa em torno de certo tipo de moralidade pública foi empreendida como uma batalha espiritual por parte de grupos religiosos, que passaram dos púlpitos ao ativismo político, especialmente, em entornos eleitorais, cujo substrato ideológico julga as políticas públicas que visam a ampliação de direitos como contrárias a seu sistema de crenças e valores cristãos, os quais almejam como parâmetro para toda a sociedade. 

O avanço do ativismo evangélico conservador na América Latina é indiscutível. Embora esse ativismo seja uma constante na maioria de países da região, Brasil e Colômbia representam uma amostra dos níveis de repercussão que as maiores lideranças pentecostais e neopentecostais têm na política partidária. Esses dois países merecem atenção com relação, por uma parte, a seus giros políticos e o que isso significa para a região e, por outra parte, à forma como a mobilização evangélica coadjuva nessas guinadas ou processos políticos. 

A política colombiana tem representado um bastião histórico da direita na vizinhança e, internamente, as lideranças evangélicas de ampla trajetória política têm estado alinhadas apenas a esse lado partidário. Por sua parte, a política brasileira do último século, com o maior partido de massas no poder, deu em 2018 um salto para a extrema direita que já vinha se fermentando, em conjunto com algumas das maiores lideranças evangélicas conservadoras que representaram uma força política com maior visibilidade durante o governo Bolsonaro.  

No gigante sul-americano, a direita cristã se fortaleceu mobilizando-se decisivamente em entornos eleitorais, em âmbitos legislativos e executivos, tornando-se um “modelo” fértil de neoconservadorismo para o resto da região. Na Colômbia, embora o ativismo evangélico não esteja no mesmo nível do que no Brasil, tem crescido em número e poder, com especial influência nas eleições. 

Ambos os países compartilham problemas estruturais tais como altos índices de pobreza, violência, narcotráfico, corrupção, desemprego, crise de representatividade, discriminação, racismo e demandas insatisfeitas em termos de democratização de direitos e de liberdades individuais. Somado a isso o contexto pandêmico recente da Covid-19 agudizou o nível de desigualdade e mostrou a enorme vulnerabilidade das escassas e ineficientes políticas públicas endereçadas para a esmagadora maioria de pobres nesses países. Claramente, o tema é complexo e extenso, mas aqui pretende-se esboçar algumas linhas que contextualizam a fase do mais recente ativismo evangélico nos dois países mencionados, bem como os avanços do neoliberalismo que permeou todos os campos sociais. 

2. Contexto político-econômico no Brasil e na Colômbia

O neoliberalismo é um denominador comum entre Colômbia e Brasil, mas diferem no nível e nas perspectivas que seus respectivos governos têm adotado para enfrentá-lo. A Colômbia foi historicamente governada pelas elites de direita o que facilitou o enraizamento do neoliberalismo. Esse país esteve constantemente sumido na direita partidária até recentemente quando, em 2022, aconteceu um fato impensável e foi a eleição da esquerda no poder. O Brasil, na alternância partidária, durante seus governos de esquerda tentou diminuir os efeitos neoliberais mediante o progressismo, porém da virada esquerdista passou a uma extrema direita durante o governo Bolsonaro. 

Na Colômbia, o neoliberalismo instituiu-se em todos os campos sociais e foi bem-sucedido como plano econômico gerido pelas elites, enquanto as classes menos favorecidas se empobreceram ainda mais. O conflito armado interno gerou enormes desgastes e o Estado terminou forjando-se na contrainsurgência, fazendo da guerra um mecanismo de vida, que encontrou em correntes ideológicas como o uribismo o terreno fértil para a construção de inimigos internos. Essa corrente ideológica assegurou no poder a Álvaro Uribe Vélez durante dois períodos presidenciais (2002-2010). Logo, nomeou a Juan Manuel Santos como ministro de economia, que mais tarde se candidatou e ganhou as presidenciais (2010-2018) e, rapidamente, Uribe o considerou como inimigo pelo fato de propor os diálogos com a guerrilha das FARC-EP. Em 2018, o discípulo mais novo do uribismo, Iván Duque, chegou ao poder sob o mote de representar um relevo geracional. Durante várias décadas o uribismo, como corrente ideológica de direita que promove o autoritarismo, conseguiu se inserir em todas as camadas sociais. 

A começos do século XXI enquanto países como Brasil, Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela fizeram parte da chamada onda vermelha, Colômbia ficou afastada das experiências progressistas, sendo governada pela direita e, apenas, preservou suas históricas relações com os Estados Unidos. Por sua parte, Brasil, na virada dos anos 2000, sob o governo de Lula da Silva (2003-2010) gerou admiração na região dado o que o Partido dos Trabalhadores (PT), representou a contenção do neoliberalismo. Desse modo, o progressismo trouxe muitas expectativas na solução de problemas estruturais naquele período. 

Não obstante, desde aquela época tanto no Brasil quanto na Colômbia, o futuro estaria mais próximo do uribismo do que do petismo, dadas as tendências antidemocráticas da extrema direita na região. Por sua parte, as políticas de contenção adotadas pelos governos do PT para enfrentar o neoliberalismo não evitaram as crises econômicas e sociais influenciadas em boa medida pelo contexto internacional. A expectativa progressista tornou-se o oposto, sob ideias desenvolvimentistas e de precarização da economia diante da globalização. Portanto, a contenção esperada do neoliberalismo transformou-se em aceleracionista e serviu de combustível para atiçar a direita radical e fermentar o neoconservadorismo. 

Na análise de Santos (2019) o petismo gerou um neoliberalismo inclusivo e em decorrência um progressismo regressivo, que contribuiu à ascensão de Bolsonaro e no recrudescimento da razão neoliberal. Na visão desse analista, o neoliberalismo autoritário sob o governo de Bolsonaro foi fruto do colapso das expectativas geradas pelo progressismo, que operou como barragem de contenção de medidas que foram se acumulando. Para Santos e Braga (2020) a transferência de votos petistas para Bolsonaro se deu por conta dos escândalos de corrupção, a capitalização do conservadorismo, bem como dos repertórios discursivos autoritários e patriarcais como antídoto contra narrativas como a “ideologia de gênero” imputada ao petismo. 

O empreendedorismo popular, o conservadorismo político e o neopentecostalismo possuem relações imbricadas para fabricar inimigos internos capazes de mobilizar a população. Assim, o apoio dos evangélicos, dos militares e as alianças com partidos fisiológicos ajudaram na manutenção do passado governo de extrema direita no Brasil. “É como se a moral pudesse atar, o que a economia dissolve” (Santos e Braga, 2020, p. 20, no prelo).  

Por sua parte, o caso colombiano representou a implementação do neoliberalismo sem experiências de esquerda ou minimamente progressistas, até recentemente com Petro, por ter sido um bastião da direita subcontinental. As elites constantemente no poder optaram pela continuidade desse modelo econômico. Não obstante, o acúmulo de problemas estruturais junto às recentes demandas de diversos movimentos sociais se traduziu em protestos em todo o território nacional durante os últimos quatro anos. O desgaste que gerou o governo Duque (2018-2022) terminou de sucatear por completo o país, perante o qual a população reagiu com levantes em todo o território nacional. 

Em 2022 foi eleito pela primeira vez um candidato de esquerda, que pretende marcar uma ruptura na política partidária da história colombiana. O atual presidente Gustavo Petro representa um progressismo com características diferentes às do começo do século na região, já que dialoga com as demandas de grupos marginalizados, e busca consolidar-se como líder da integração regional, a partir dos erros e acertos dos anteriores períodos liderados pela esquerda no poder no subcontinente. Porém, pouco a pouco suas decisões e alianças vão marcando os rumos das tensões partidárias de acordo às políticas adotadas e seus resultados em termos de redistribuição e reconhecimento. As propostas de reforma em diversos campos vão mostrar as formas desse governo para enfrentar as nefastas consequências do neoliberalismo, ora de ruptura, ora de contenção. 

No Brasil, após os comícios presidenciais de 2022, também vão se reacomodando forças com relação à política partidária e no que tange à forma de enfrentar o neoliberalismo, o qual influencia o campo político-religioso, ora de apaziguamento, ora de recrudescimento. 

O neoliberalismo configurou-se como projeto transversal na região e as medidas para enfrentá-lo foram em duas vias, ora freando-o, ora dando-lhe continuidade. Brasil e Colômbia, desde dois posicionamentos governamentais diferentes, durante as últimas duas décadas, embora com alternâncias no caso brasileiro, constituem duas perspectivas enquanto formas de lidar com a razão neoliberal. Duas perspectivas que a partir dos governos eleitos em 2022 marcarão uma conjuntura, ora de maior reação da extrema direita, ora de sua contenção, perante os graves problemas pelos que atravessam os dois países, acentuados pela recente crise pandêmica. Somado a isso, o ativismo conservador evangélico continua mobilizando-se em torno de seus interesses e buscando se afiançar ainda mais como força política ou, em alguns casos, apenas tentando manter a influência já conseguida.

3. Ativismo evangélico conservador

O ativismo político evangélico conservador avança em toda a região da América Latina. Desde os últimos processos constituintes, em países como Colômbia e Brasil a mobilização tem sido mais visível dada sua expansão demográfica e o fortalecimento de seus capitais simbólico, financeiro e político. Embora esse ativismo não seja recente na região, mostra-se no presente com maior auge, visibilidade e ferrenhas disputas em torno a visões de mundo que pretendem abranger a sociedade como um todo. As redes sociais têm sido um fator chave na divulgação e reprodução de repertórios conservadores. Por sua parte, os períodos de eleição na região representam uma fonte fértil de análise para sondar a forma como progride esse ativismo.

No campo religioso dos dois países, embora o catolicismo ainda represente a maior adesão da oferta religiosa, houve um declínio hegemônico que outrora significou o monopólio religioso com exclusividade nas relações com o Estado. Esse privilégio há várias décadas começou a ser disputado pelo segmento evangélico de cunho pentecostal e neopentecostal. A expansão desse segmento deslocou o tratamento diferenciado da Igreja Católica e posicionou-se como concorrente da ordem moral e como força política. 

E, apesar de que as pesquisas ainda registram o catolicismo como a religião majoritária no Brasil e na Colômbia, a tendência desde os anos 1980 é de contração com respeito aos níveis em tempos precedentes. Uma das causas da contração católica tem sido a mobilidade religiosa para cultos evangélicos, cujo revigoramento se deu, no caso brasileiro, a partir da redemocratização do país.  Desde aquela época, a vertente pentecostal teve notável impacto nos ambientes governamentais  sendo eleitos 18 deputados na Assembleia Nacional Constituinte brasileira, aumentando gradativamente sua cota legislativa e disputando vagas no Executivo até à aquisição da rádio e da televisão, como veículos de grande repercussão para a moralidade pública (Montero e  Almeida, 2000). 

A proximidade do Estado com lideranças católicas e, depois de algumas décadas, com evangélicas, marcaram relações de cooperação e, em boa medida, diferenciadas em comparação com outras religiões ou cultos isentos do mesmo reconhecimento e até perseguidos socialmente, embora constituam formas populares de religiosidade. Por exemplo, a intolerância aos cultos mediúnicos constituiu o fenômeno religioso brasileiro até meados do século XX. Após esse período, a Igreja católica começou a sofrer certo desgaste na sua posição hegemônica, dadas as transformações sociais e adaptações ecumênicas no contexto internacional, no que tange ao reconhecimento de outras religiões e o crescente pluralismo religioso. 

O segmento evangélico gradativamente alcançou poder simbólico, econômico e político, além de prover identidade, sentido, certezas e engajamento às atividades religiosas, sociais e políticas, que permitem, atualmente, disputar diversas pautas nas arenas públicas perante o que consideram ameaçante para suas concepções de mundo, da moral cristã, da família e da liberdade religiosa. O apelo popular de suas demandas morais no tocante à família, à sexualidade e ao gênero, além da agitação em torno das narrativas “castro-chavistas” e do “marxismo cultural”, conformam parte do andaime discursivo desse segmento, notadamente, em entornos eleitorais.  Sua indignação moral, ancorada na existência de valores morais absolutos, numa sociedade com transformações culturais permanentes, recai em agentes e práticas que não endossam seus mesmos valores (Mariano, 2016). 

Esse ativismo que caracteriza as lideranças conservadoras das maiores igrejas foi influenciado pelo evangelicalismo norte-americano, cuja matriz político-religiosa foi composta por grupos protestantes brancos, de tradição cristã antipluralista  (Sales e Mariano, 2019). A Teologia da Prosperidade, do Domínio, as batalhas espirituais, a demonização de movimentos sociais, bem como os discursos que alertam sobre a “ameaça” do comunismo e das esquerdas para a nação, e a defesa da propriedade privada, constituem alguns dos repertórios mais mobilizados na militância tanto das maiores lideranças evangélicas conservadoras quanto de seus seguidores mais comprometidos. 

A articulação de agentes e conteúdos programáticos perpassam organizações internacionais como provida e os chamados think tanks num contexto neoconservador que tem como intuito a regulação da moralidade pública, pautada como fonte de autoridade política, que tornou-se o carro chefe do ativismo evangélico conservador, pela capacidade mobilizadora de estruturas tradicionais chaves, ancoradas em vários segmentos populacionais, que coadjuva no desfecho de ambientes decisivos tais como os entornos eleitorais.

3.1 Ativismo conservador colombiano

A Igreja Católica se configurou como a instituição mais influente na regulação de valores, crenças e costumes desde a época da Colônia até meados do século XX. Não obstante, o enraizado conservadorismo católico colombiano prolongou-se em todos os campos sociais até o presente. Certa perda no seu monopólio foi dando passo ao ativismo político evangélico, que possui maior visibilidade mediante lideranças pentecostais e neopentecostais das maiores igrejas. 

Colômbia ainda é um país majoritariamente católico, com diversos processos de pluralismo religioso, secularização e laicidade. Em instâncias governamentais a laicidade tende minimamente a ser preservada, auxiliada pela vigilância e defesa que segmentos seculares fazem dela, embora haja casos nos quais vários políticos pautem suas propostas com base na moral cristã. As lideranças, particularmente, evangélicas que têm sua vaga no Congresso, não constituem em número uma porcentagem significativa, mas possuem ampla trajetória política, com experiência na criação de partidos políticos confessionais ou de coalizão com partidos tradicionais. Esse segmento não representa um grupo coeso, até porque entre eles são concorrentes a nível doutrinal e político, mas quando se trata de pautas morais, relacionadas à família, gênero e sexualidades, converge sua defesa da moral cristã.

Lideranças evangélicas participam na política colombiana mais intensamente há duas décadas, mas tem sido nos últimos anos que sua mobilização e força política ficou ainda mais evidente em entornos eleitorais. Porém, não existe um voto confessional em bloco nem coesão permanente entre os partidos políticos cristãos, mas eventuais acordos em torno de quesitos morais e interesses políticos.

Na Colômbia, a filiação religiosa não está necessariamente relacionada com a intenção de voto em partidos ou candidatos evangélicos. Além disso, os dois partidos religiosos mais expressivos no país, o Movimiento Independiente de Renovación Absoluta (MIRA) e a Colombia Justa y Libres (CJL), não representam a diversidade evangélica, apenas sinalizam duas opções na política eleitoral, mas com uma importante base eleitoral. Somado a isso, as constantes divergências em torno da criação de um projeto evangélico tornam mais difícil a consolidação de uma bancada cristã no Congresso. 

Estas lideranças evangélicas têm se alinhado apenas à direita partidária. Suas pautas, além da moral conservadora, vinculam-se com a defesa da família, da propriedade privada, da redução do Estado, da promoção do empreendedorismo, da rejeição à esquerda e da aderência a narrativas tais como a “ideologia de gênero” e o “castro-chavismo”. Esta última representa uma ameaça para a direita conservadora em razão que, para eles, um governo de esquerda como foi o de Castro na Cuba ou do Chávez na Venezuela expressam uma clara vitória da insurgência e uma derrota para a sociedade levando a sua decadência econômica. 

Nem todas as igrejas, nem todos os pastores participam na política partidária colombiana, mas a mobilização em entornos eleitorais tem sido notável através de partidos próprios ou em aliança com diferentes forças. Por exemplo, a campanha do Não ao plebiscito dos acordos de paz, em 2016, patrocinada por alguns pastores e igrejas, colocando sua cota moral, marcou um momento importante na visibilidade política dessas igrejas. Sob o guarda-chuva de narrativas como a “ideologia de gênero” gestaram uma grande campanha que reforçou o desfecho do resultado plebiscitário nesse 2016. Em 2018 também tiveram protagonismo no governo de Iván Duque, já que alcançaram vagas no Executivo, pelo permanente vínculo com o uribismo, que lhes serviu de palco e de proteção política.

Nas eleições presidenciais de 2022, camadas do segmento evangélico, mediante coalizão de várias das maiores igrejas, levaram candidato presidencial ao concurso eleitoral. Embora os resultados nessas presidências não tenham sido favoráveis para os evangélicos, pela primeira vez uma parte desse segmento fez coalizão inter-religiosa sem recorrer a partidos seculares, em vista que contam com uma base eleitoral significativa e ativa, que paulatinamente construiu poder político para negociar na política partidária. 

Durante a última campanha presidencial a mobilização desse segmento, além de ter feito uma coalizão inter-religiosa, apelaram a narrativas com relação a Deus e o Diabo, atrelando este último à esquerda por considerá-la ateia e com o intuito de queimar igrejas. A conformação desses repertórios discursivos foi reproduzida mediante grupos de Whatsapp e Facebook, como os canais mais usados pela base eleitoral das maiores igrejas. Somaram-se os tradicionais discursos da “ameaça gay” para as crianças e a defesa da família “natural”. Um outro componente, muito mais replicado foi a bruxaria, mas não per se, mas porque foi vinculada à chapa vice-presidencial da época, Francia Márquez, num claro exemplo de racismo estrutural, por ser mulher negra e de esquerda. 

Nessas eleições, pela primeira vez a direita não chegou ao poder e, em consequência, esse recuo terminou arrastando o ativismo evangélico conservador, que apesar de ter alcançado algumas vagas no Legislativo e até ter levado candidato presidencial à contenda, não conseguiu impactar como em anteriores disputas eleitorais.

Não obstante, o menor protagonismo nas eleições de 2022 não significa retraimento na mobilização evangélica conservadora. O fato de ter se formado uma coalizão inter-religiosa entre algumas das maiores igrejas e nomear candidato presidencial, poder-se-ia promover uma bancada evangélica sem recorrer a alianças com partidos tradicionais. Essa possibilidade vai depender da superação de suas diferenças doutrinárias, dos próximos rumos da contenda política, marcada pela eleição presidencial de esquerda e dos intuitos das lideranças evangélicas enquanto se sintam incomodadas com políticas que vulneram seus interesses. 

As últimas eleições presidenciais registraram a conjuntura pela que atravessa o ativismo evangélico conservador e sinalizaram o grau de aderência a repertórios morais nesses comícios, que outrora foram coadjuvantes de processos políticos, mas que durante as presidências de 2022 essa potência não foi tão consistente, somada a diversas variáveis, o que permitiu levar ao poder um candidato de esquerda. 

Além da intencionalidade evangélica de serem protagonistas políticos e exigir do Estado o que for, para garantir seus interesses, a atual fase desse ativismo vai depender também do que conjunturalmente acumularem em termos de capitais e dos passos que vão marcando o atual governo em torno de políticas públicas.  

Tanto na Colômbia quanto no Brasil, o neoconservadorismo se recrudesce, atrelado à direita cristã, porém, não no mesmo nível. Na Colômbia esse neoconservadorismo ainda está em desenvolvimento e apesar de sua gestação não alcança o patamar que se vive na política brasileira.

3.2 Ativismo evangélico conservador brasileiro

Semelhante ao caso colombiano, apesar do acelerado crescimento do segmento evangélico, as pesquisas ainda registram o catolicismo como a religião com maior adesão no Brasil. A formação da bancada evangélica gestou-se na Constituinte de 1988 consolidando-se paulatinamente como força política. Sua importância em número e poder é incontestável em entornos eleitorais, como foi demonstrado durante o último impeachment e as subsequentes presidenciais, mediante sua iminente mobilização.  

As maiores lideranças evangélicas foram atuantes nos primeiros governos de Lula da Silva e, também, no período presidencial de Dilma Rousseff, mas se afastaram e pularam do barco petista após a crise econômica de 2015 e 2016. Nas eleições de 2018 apoiaram massivamente Bolsonaro e foram protagonistas nesse governo. Seu pragmatismo e adaptação permitiu-lhes preservar os interesses estratégicos de longo prazo de suas organizações religiosas. A diferença da Colômbia, cujas lideranças evangélicas estavam alinhadas apenas à direita partidária, no Brasil elas têm estado aos dois lados da política partidária, passando de ser apoiadores de certo candidato a fazer ferrenhas campanhas contra esse mesmo aspirante, especialmente quando se tratou de Lula e Dilma. Pastores como Marcos Feliciano e Edir Macedo que outrora apoiaram o governo de Dilma, posteriormente deslocaram seu cabo eleitoral para apoiar a outra margem política em 2018. 

Nas votações do impeachment de 2016, dos 81 deputados que compunham a Frente Parlamentar Evangélica, 75 votaram a favor. As argumentações dessas votações apelaram às crenças, à família e a quesitos morais (Prando e Carneiro, 2017). Essa bancada normalmente não opera como bloco, já que está integrada por diversos partidos, igrejas e pautas que concorrem entre si. Porém, as votações a favor da queda presidencial da presidenta Dilma Rousseff foram em uníssono. As pautas das lideranças evangélicas que acompanharam a mobilização durante esse processo foram o combate à chamada “ideologia de gênero”, à ameaça comunista e à destruição da família. 

Os resultados da campanha pró-impeachment serviram como coadjuvante na campanha presidencial de 2018. Aos problemas econômicos e escândalos de corrupção somou-se o fortalecimento da direita cristã, que através de redes sociais distribuiu sua rejeição ao PT e seu respaldo a Bolsonaro como o mais próximo a representar os valores morais absolutos pregados pelo neoconservadorismo.

O retorno de diversos repertórios morais operou com discursos já fermentados que impulsionaram clivagens político-ideológicas, inclusive gestadas desde muito antes da eleição de Bolsonaro, mas que se consolidaram durante seu período de governo (2018-2022), gerando rearranjos de forças em instâncias governamentais. “No Brasil, a polarização política recente colaborou para consolidar uma direita cristã. Antipetismo e anti-esquerdismo passaram a nortear  crescentemente  posições  políticas  de  líderes  e  deputados  evangélicos,  sobretudo  a partir de 2013” (Mariano e Gerardi, 2019, p. 74).  

Embora desde antes do impeachment ocorrer, já despontava o ascenso da direita no poder. A campanha presidencial de 2018, com tudo o que significou, apenas foi o prelúdio do que viria enquanto à rearranjo de forças no Estado e sua versão evangélica neoconservadora. Durante o governo Bolsonaro esses segmentos se fortaleceram e protagonizaram controvérsias públicas que afrontaram as instituições e a democracia em diversos campos sociais. A capitalização das pautas morais teve tanto impacto que serviu novamente como palanque na contenda eleitoral presidencial de 2022.   

Os escândalos de corrupção por parte de algumas lideranças evangélicas no governo Bolsonaro e certas expectativas não atingidas levaram a que camadas reavaliaram seu voto no militar, durante a última campanha presidencial. Os esforços da campanha petista para virar a chave do religioso para o econômico surtiu alguns efeitos favoráveis para sua chegada ao poder novamente. Porém, já avançado o governo petista, a contraofensiva conservadora continua com muito fôlego e as lideranças mais ferrenhas não cedem terreno perante várias tentativas de projetos de lei. 

As últimas presidenciais apresentaram enorme desafio para a esquerda brasileira, por conta do férreo ativismo conservador e sua capacidade de distribuição de ódio contra o petismo e a plena rejeição dele no poder. As fakes news estiveram à ordem do dia e a disputa entre o povo de Deus e do Diabo marcou, sem precedentes, a contenda eleitoral. Desde excomunhões por manifestar o voto petista até a acusação iminente de queima de igrejas por parte do PT, levou à campanha de esquerda a reforçar atos e discursos a camadas cristãs para desmentir tudo aquilo e reivindicar a liberdade e respeito de cultos. Nesse sentido, não é um quesito menor que muitos dos esforços da campanha petista se dirigiram a persuadir a segmentos evangélicos sobre sua decisão nas urnas, além da tentativa de criar um ambiente mais favorável e de segurança sobre as implicações de votar no Lula. 

Características demoníacas foram atribuídas na época ao candidato do PT por parte de certos pastores evangélicos. Desde julgamentos como o não merecimento de tomar a Santa Ceia a possíveis votantes petistas, até afirmações que pastores seriam forçados a efetuarem casamentos de pessoas do mesmo sexo, tiveram ampla reprodução midiática até o ponto do PT falar publicamente, e em repetidas ocasiões, que seu foco estava em resolver quesitos econômicos e não em prejudicar os cultos. 

A oposição insistia em identificar o petismo apenas com pautas identitárias e, em decorrência disso, camadas de evangélicos o vieram como uma ameaça contra a doutrina cristã e um risco para sua liberdade religiosa quando falarem, por exemplo, de sodomia, já que afirmavam que seriam punidos (Folha, 2022a).  

Essa última campanha presidencial teve uma disputa ferrenha em torno do mal e do bem, de Deus e do Diabo, o qual mostrou o nível de estética na política brasileira, cujo terreno vinha sendo fermentado e mais atiçado desde 2018. Canais como whatsapp e facebook conseguiram, em tempo real, difundir em diversas camadas da população conteúdos desfavoráveis do opositor para atingir os intuitos políticos de momento. 

As restrições de participação em rituais cristãos perante manifestações de votar no candidato Lula foram apenas uma expressão do nível de tensão e acirramento que se viveu ao interior das igrejas mais proselitistas e, sem muita ressalva, extremistas, as quais não representam casos isolados ou insignificantes no jogo político.

Na época, as declarações do deputado e pastor Marcos Feliciano sobre o planejamento de fechar igrejas causaram sérios incômodos para o petismo, que terminou levando esse quesito perante o judiciário, para exigir a apresentação de provas sobre tal acusação. Enquanto isso, Bolsonaro alimentava os receios do segmento evangélico com afirmações apocalípticas como "É preciso estar atento. A partir de hoje, mais do que nunca, os que amam o vermelho passarão a usar verde e amarelo, os que perseguiram e defenderam fechar igrejas se julgarão grandes cristãos, os que apoiam e louvam ditaduras socialistas se dirão defensores da democracia" (Folha, 2022b).

Perante tal contexto, a campanha petista reforçou que foi sob o governo Lula que se defendiam bandeiras e mobilizações cristãs como a Marcha para Jesus, além da regulamentação da liberdade religiosa. Essa última contenda eleitoral mostrou novamente a força política que representa o segmento evangélico conservador, até o ponto do PT ter empreendido diversos atos especificamente para desmentir as acusações de alguns pastores, com o intuito de atrair novamente a suas fileiras votantes bolsonaristas. 

Com atos encaminhados para o segmento cristão, a campanha petista buscou no meio de orações conjuntas, louvores e linguagem cristã, cativar esse segmento, que já contava com parcelas de cunho progressista alinhados com a campanha que teve como mote “não é pecado votar no Lula”.

Fonte: Uol

Esse investimento, numa campanha presidencial, não foi pouca coisa e mais vindo de um dos candidatos que liderava as pesquisas, mas, ainda assim, teve que fazer o próprio para persuadir o segmento evangélico de suas qualidades como candidato, como pessoa e até como crente, na tentativa de recuperar os votos que tinham sido consignados à outra margem política. E não era para menos quando a pesquisa do Datafolha (Uol, 2022) revelava a ampliação de votos entre os evangélicos favorecendo Bolsonaro com o 49% contra o 32% de Lula.

Fonte: arquivo da autora

Como contraofensiva, o PT convocou lideranças religiosas afines a seu governo para auxiliá-lo no avanço bolsonarista, mediante a criação de propostas que refutassem as fakes news. Para tal efeito se criou o portal “restitui Brasil”, que, através de vídeos, visou trazer para a memória as leis sancionadas nos governos petistas a favor dos segmentos religiosos. Além disso, o petismo teve que enfatizar várias vezes que suas prioridades eram socioeconômicas e não religiosas, no sentido de não afetar negativamente qualquer credo.  

O levantamento indica ainda que a questão econômica divide espaço com a identidade religiosa na formação do voto de parte dos fiéis. Quanto menor a renda, mais sensível fica esse eleitor a fatores como a inflação. A tendência de votar em Lula cresce. Não o bastante, contudo, para impedir que crença e temas morais roubem votos do petista entre os mais pobres (Folha, 2022c). 

A gestão do governo eleito em 2022 mostrará o caminho que percorrerá o ativismo evangélico conservador brasileiro, em termos de disputa para conservar seu protagonismo e o nível de potência de seus repertórios conservadores. Cabe frisar que essas camadas de direita neoconservadora representam uma alta porcentagem dentro do ambiente político, que têm conseguido ferir processos democráticos. 

Os rumos do cenário político brasileiro representam uma ponte de referência para o resto da região tanto em termos de coalizões políticas quanto do ativismo evangélico conservador, já que o Brasil lidera o crescimento evangélico e sua ampla influência na política partidária.  

3.3 Controvérsia pública

Os entornos eleitorais tornam-se palco para atiçar o solo fértil do conservadorismo e para capitalizar as múltiplas carências econômicas de muitas camadas como consequência do enraizamento neoliberal. Além disso, projetos de lei, criação ou eliminação de ministérios públicos, referendos, campanhas presidenciais revestidas de batalhas espirituais entre Deus e o Diabo, configuram algunas das gramáticas discursivas e das formas de fazer política por parte das maiores lideranças evangélicas no presente, embora com impactos diferentes nos casos colombiano e brasileiro. 

Um dos fatos que exemplifica um pouco mais os níveis do ativismo evangélico conservador nos dois países mencionados e sua articulação com o governo, tem a ver com a controvérsia pública, no caso colombiano, da criação do Ministério da Família e, no caso brasileiro, de readequação dessa pasta já existente. Embora essa controvérsia se recrudesceu em 2018, e o que veio após sinalizou o engajamento desse tipo de políticas públicas. 

Na Colômbia, essa proposta emergiu após a conjuntura favorável para as lideranças evangélicas em 2016. A pastora evangélica, advogada e senadora Claudia Rodríguez de Castellanos da igreja Misión Carismática Internacional (MCI) foi uma das porta-vozes do projeto, junto a membros do Partido Conservador, que argumentaram sua importância e necessidade. As polêmicas passaram pela controvérsia desde sua viabilidade financeira até a alerta de criar uma instituição para operar como pauta moral e religiosa sob a visão de um único conceito de família. 

Essa proposta foi radicada com o argumento de garantir a proteção integral da família em termos morais (PL, 2018) o qual causou tensão entre diversos setores políticos. Porém, a proposta não tinha apenas um conteúdo moral, mas também o intuito de redução institucional, no sentido de aglutinar diversos órgãos e reduzi-los a um único ministério. “O perigo dessa proposta foi tratar de uma moralidade imposta por parâmetros estatais. Pressupõe-se a existência de uma ‘família ideal’ persistindo numa visão de sociedade [...]que atribui à família, como grupo primário, a saúde mental da população e a educação moral e cívica das novas gerações” (Puyana, 2018, tradução nossa).

A minuta do projeto estabelecia que órgãos tais como o Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar (ICBF) e as delegacias de família passariam a jurisdição do Ministério da Família. Além disso, outorgava ao governo a faculdade para eliminar ou fusionar entidades que desempenhem funções relacionadas à família. A fundamentação jurídica desse projeto, por parte de lideranças evangélicas, foi a redução burocrática e de gastos do Estado com a finalidade de gerir desde uma única instituição as funções de vários órgãos e, claramente, ter o controle sobre os temas relacionados à família, como um quesito extremamente caro à sociedade colombiana.   

Não obstante, depois de passar por acirrados debates em instâncias legislativas, o projeto ficou arquivado. Porém, a ideia latente do segmento evangélico é voltar sobre esse projeto até conseguir sua aprovação, e que aliás continua gerando muitos questionamentos no que tange a sua implementação. Nesse sentido, apesar da força política que representam lideranças evangélicas na política colombiana, o contrapeso de poderes e certa defesa da laicidade minimizam um pouco a concretização de várias pautas mobilizadas nas arenas públicas por esse segmento. 

Em paralelo, no Brasil, o Ministério da Família já existia desde 1997 no gabinete Executivo, sob a denominação de Secretaria de Direitos Humanos. Mas, com a chegada de Bolsonaro ao governo, a pasta foi transformada em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), nomeando nessa pasta a pastora evangélica e advogada Damares Alves. Nessa perspectiva, se procurou a defesa da família heteroparental como única opção, desconhecendo as diversas formas dessa configuração social, apesar que as declarações iniciais da pastora foram na via contrária: "a pauta LGBT é muito delicada, mas a minha relação é muito boa, dá para gente ter um governo de paz entre o movimento conservador, movimento LGBT e os demais movimentos” (Folha, 2018). 

Através da readequação dessa instituição a categoria família foi central na organização dos direitos humanos, sexualidade, gênero e reprodução, pautas que capitalizou Bolsonaro tanto desde sua campanha em 2018 quanto durante seu governo, alinhando o discurso moral cristão com o solo fértil do conservadorismo, muito caro para amplos e diversos segmentos da sociedade. Desde que assumiu a pasta, a ministra Damares enfatizou em que “o órgão trabalha alinhado com o posicionamento do Executivo Federal para fortalecer os vínculos familiares tradicionais, através da criação de políticas públicas permanentes, a fim de que as mesmas estivessem asseguradas constitucionalmente independente do governo em gestão” (Bortolin, 2020, p. 960). 

Desse modo, o recrudescimento em torno da sacralização da família e da moralidade por setores conservadores é crescente nos últimos anos no Brasil e na Colômbia. Significa a capitalização da mobilização de segmentos morais conservadores nas arenas públicas, cuja força vem se cristalizando a nível mundial. No caso brasileiro, Bolsonaro ampliou a força e legitimidade dessa dinâmica começando pelo alinhamento do Ministério já citado à afinidade ideológica entre ele e as lideranças evangélicas conservadoras. Por sua parte, no caso colombiano, a criação desse órgão nem conseguiu passar no Congresso apesar da forte influência e peso político de evangélicos em aliança com partidos tradicionais, além da afinidade com o presidente da época, Iván Duque. Porém, trata-se de um projeto que vai continuar sendo disputado pelos evangélicos, especialmente, em entornos eleitorais. 

O ativismo evangélico apresenta ritmos diferentes nos países mencionados, mas apesar disso sua força e mobilização, especificamente em entornos eleitorais, é incontestável. Além disso, essa força como parte integrante da extrema direita engrena conteúdos, sensibilidades e medos que terminam capitalizando e cristalizando a avançada contra a democracia e contra formas de sociabilidade diversas e não hegemônicas, afiançadas também pelo enraizado neoliberalismo na região.

4. Ativismo evangélico pós-eleições 2023

Avançado o governo Lula, a bancada evangélica conservadora continua pressionando pela manutenção de suas exigências, alegando se sentirem perseguidos. As pautas mobilizadas durante a campanha presidencial tais como a ameaça à família tradicional brasileira ainda causam receio em segmentos evangélicos, porque consideram que a fé cristã está sendo perseguida pelo governo petista. 

Vários embates têm se gestado nestes primeiros meses de mandato lulista em torno de projetos de lei, da isenção tributária a pastores evangélicos, do programa de equidade de gênero e raça no SUS, que criou o grupo para o enfrentamento da discriminação contra religiões de matriz africana, e da tentativa de criação, por decreto, de um grupo interministerial para elaborar políticas de enfrentamento à discriminação contra religiões de matriz africana.

Esse contexto tem sido atiçado pelo mesmo tom das pautas que foram mobilizadas durante a campanha presidencial, que no final deixa a alguns grupos evangélicos receosos do direcionamento político do presidente Lula e a outros com o fôlego suficiente para contrapor as iniciativas em torno de democratização de direitos e políticas, timidamente progressistas, que significam para as maiores lideranças evangélicas conservadoras claras ameaças contra os princípios  cristãos e uma afronta a sua doutrina moral.  

Os embates em torno do Projeto de Lei das Fake News têm atiçado a forte pressão que, mesmo durante a campanha presidencial, lideranças evangélicas já expressavam seu desacordo ao considerar essa iniciativa como uma forma de cercear sua livre expressão, no sentido de restringir as manifestações de religiosos contrários a temas como homossexualidade, além de ver esse PL como perseguição a parlamentares de centro e de direita. Lideranças evangélicas têm conduzido essa pauta como uma batalha espiritual ao considerar que esse tipo de projetos busca censurar a fé, por exemplo, mediante o encorajamento nas redes sociais a banir versículos bíblicos, corroendo a liberdade de expressão. Mas, no fundo, esse projeto visa exigir responsabilização naquilo que se divulga e no modo como é feito.

Os empenhos se concentraram em atrair o eleitorado evangélico às fileiras petistas mediante o confronto público com aquelas acusações, para demonstrar as intenções do candidato Lula a favor da liberdade religiosa e a importância desse segmento na construção democrática. Porém, ultrapassada a campanha eleitoral e avançado o presente governo, os esforços pró-evangélicos por parte do petismo não têm sido suficientes para enfrentar os embates e os constantes pedidos desse segmento perante diversas iniciativas legislativas, que são vistas por eles como contraproducentes ao agir cristão.  A bancada evangélica conservadora põe em questionamento esse tipo de iniciativas governamentais, pois considera que o Estado deve ter limites quando estiver ferindo as expressões humanas. 

O PT na presidência, lida com uma consistente bancada que apesar de não ser bloco em muitos momentos, conseguem estabelecer redes para influir diretamente nas casas legislativas, municipais, estaduais e federais. Seu impacto vai além dos entornos eleitorais, já que construíram afiliações em torno de valores socialmente herdados e, que de fato, apesar de não ter a figura de Bolsonaro no Planalto, boa parte da bancada evangélica age de acordo à visão que conduziu a anterior agenda governamental. 

Essa pressão tem gerado efeitos que beneficiam os interesses dessa bancada. O assunto é até que ponto o governo Lula consegue concessionar essas demandas sem que isso implique continuidade, por exemplo, de práticas de discriminação ou bloqueio de políticas públicas que favoreçam grupos não normativos. 

No caso colombiano, durante o atual governo, várias das maiores lideranças evangélicas conservadoras posicionaram-se como antigovernistas, obedecendo a sua acostumada rejeição à esquerda e perante os medos de um governo progressista. No entanto, avançado o governo de Petro, alguns membros dos partidos confessionais como o MIRA e o CJL se colocaram a favor de projetos governistas como a reforma previdenciária, argumentando sua posição independente e não de oposição. Esse posicionamento foi criticado por alguns parlamentares, que acusam o atual governo de fazer concessões com organizações religiosas para obter apoio nas iniciativas de reformas. Embora no início do presente mandato presidencial houvesse uma proposta para exigir o pagamento de impostos às igrejas, o qual criou muita tensão, finalmente a iniciativa não passou e o foco mudou para outros assuntos na política partidária. 

Entretanto, as tensões continuam não apenas entre o governo e lideranças evangélicas conservadoras, mas também os embates inter-religioso por conta do posicionamento que cada liderança assume perante as iniciativas governamentais. No meio a um governo que se coloca como progressista, as lideranças evangélicas colombianas disputam espaços e decisões para manter seus privilégios e, pouco a pouco, de acordo aos interesses de momento, vão redefinindo forças e alianças partidárias.

5. Considerações finais

A questão nesta conjuntura é se na arena política, nos dois países, por mais que a bancada evangélica tenha se fortalecido nas últimas legislaturas, consegue, por uma parte, no caso brasileiro, continuar rearranjar forças no Estado, dado seu atual apogeu, e, por outra parte, no caso colombiano, se apesar do “recuo” nas eleições de 2022 a semente evangélica conservadora seguirá se fortalecendo como o caso brasileiro, guardadas as proporções. Somado a isso deve-se considerar a fragmentação do campo evangélico. Claramente, o desenho institucional dos dois países tem contrapesos, como a divisão de poderes, ações de controle da legislação com o judiciário, que incidem nas decisões de índole nacional. 

A justificativa dessa questão é pensar o como ideias antidemocráticas atreladas a um modo de fazer e pensar de sujeitos político-religiosos vão se consolidando na região, aproveitando o solo fértil conservador, para disputar o Estado e tudo o que implica o poder, mesmo desde instâncias democráticas. Muito desse ativismo evangélico sinaliza o acirramento da extrema direita neoconservadora, arrastando paulatinamente mais camadas sociais.    

Os antagonismos políticos derivados das disputas nas arenas públicas são parte de ferrenhos debates toda vez que se pauta sobre liberdades individuais, direitos humanos e valores morais absolutos. Pautas morais são corriqueiras nos posicionamentos de lideranças cristãs conservadoras. Esse tema não é menor quando mobiliza sensibilidades acionadas em determinados cenários políticos para atingir a sociedade como um todo.

Diversas variáveis e agentes incidem no atual panorama político. Tanto o neoliberalismo quanto o neopentecostalismo fazem parte da conjuntura neoconservadora que se evidencia a nível regional e que foram se articulando para dar mais força à extrema direita no poder, atentando contra os processos democráticos que vão se estabelecendo no subcontinente. 

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