Doutorando e bolsista CONACYT no Programa de Pós-graduação em Ciências Econômicas na Universidad Autónoma Metropolitana (UAM), México. Contato no e-mail: hugotavares94@gmail.com. É autor do livro “Estado e Capital: Principios para uma derivação do Estado” e outros trabalhos publicados, como “O Capital como Momento Político” e “Principios del momento político, el ser social capitalista y la inversión de las relaciones sociales”. ORCID: 0009-0005-6481-9685 (https://orcid.org/0009-0005-6481-9685).
Este trabalho busca analisar e problematizar algumas implicações do Estado Social em sua relação com a luta de classes. Nas últimas décadas, em toda América Latina, movimentos político-partidários progressistas de esquerda tentaram instrumentalizar o Estado, sob uma forma primitiva de Estado Social, para mediar a disputa entre capital e trabalho e suas classes representativas por meio de uma conciliação social. Argumentamos que esse processo que resultou, e vem resultando, no fortalecimento de uma direita ultraconservadora neofascista, apresenta um problema teórico de impossibilidade do uso instrumental do Estado em favor da organização de um processo social revolucionário. É necessário entender os limites transformadores da forma Estado com o intuito de criar uma frente organizada de luta contra as opressões sociais e domínio do capital.
Estado capitalista, Crise econômica, Reforma, Revolução.
This paper analyzes and presents some problems surrounding the concept of Social State in its relation to class struggle. In the last few decades, throughout Latin America, progressive leftist political-party movements have tried to instrumentalize the State, in its form of Social State, to mediate the dispute between capital and labour and their respective representative classes through class conciliation. We argue that this process which resulted, and stills results, in the strengthening of an ultraconservative neofascist right, presents a theoretical problem of the impossibility of this instrumentalization of the State in favor of a revolutionary organization. It is, therefore, necessary to understand the limits of the State form in social transformation in order to create an organized front of social dispute against social oppression and capital’s domination.
Capitalist State, Economic crisis, Reform, Revolution.
“Nos países capitalistas desenvolvidos, o estado de exceção é a ditadura, enquanto estado normal é a democracia. Nos países subdesenvolvidos, o estado de exceção é a democracia, ao passo que o estado normal são os regimes políticos de legitimidade restrita” (Mathias; Salama, 1983, p. 10). Esta frase presente no livro O Estado Superdesenvolvido de Gilberto Mathias e Pierre Salama não deve soar como nenhuma surpresa para qualquer um que conhece e viveu a realidade político-social latino-americana em diversos momentos da sua história. Desde as ditaduras militares das décadas de 1960 até 1990, como também os novos movimentos ultraconservadores de caráter neofascista que tem posto em prática sua ofensiva político institucional e extra institucional, o continente latino-americano foi e segue sendo marcado por regimes políticos de legitimidade restrita.
Nosso objetivo nesse trabalho é apresentar algumas contradições do Estado Social, tal como conceito desenvolvido por Ivanete Boschetti, para analisar como movimentos políticos progressistas de esquerda na América Latina que apostaram pela criação de um Estado forte de caráter social-democrata para tentar organizar uma conciliação entre as classes, falharam em seu projeto, resultando em golpes de Estado e fortalecimento de movimentos agressivamente repressivos contra a transformação social.
Assim sendo, nossa análise nesse trabalho passa por apresentar os fundamentos deste Estado Social, como conceito, depois analisa seus fundamentos teóricos econômicos, como apresentados por Keynes na Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, para enfim desenvolver algumas de suas contradições internas como possível agente organizador de um processo de transformação social em prol das classes oprimidas. Entendemos que o Estado Social representa um conceito contraditório que foi e segue sendo capaz de iludir parte da esquerda progressista latino-americana, prometendo avanços econômicos que são incompatíveis com a realidade da dinâmica política, econômica e social do capitalismo.
A segunda metade do século XX (até meados dos anos 1970) foi marcada fortemente, acima de tudo nos países centrais europeus, no campo socioeconômico e político por uma forte participação de um aparelho Estatal interventor. Após as graves consequências da crise econômica de 1929, abalando a estrutura econômica mundial, os Estados nacionais assumem um papel central no desenvolvimento, estabilização e recuperação das nações centrais e periféricas. No momento seguinte à Segunda Guerra Mundial, em meados dos anos 1940, temos a consolidação do chamado Estado social que, dado um cenário altamente conturbado e cheio de incertezas por parte dos agentes econômicos e sociais, atua em uma tentativa de “administrar” o desenvolvimento das forças produtivas e de mediar o processo de luta de classes na relação entre capital e trabalho com o intuito de superação das crises.
Baseado de certa forma nos princípios econômicos, desenvolvidos por Keynes, e políticos, presentes no relatório Beveridge (Boschetti, 2016), o Estado social, de forma bastante resumida, surge enquanto proposta alternativa de “conter” (ou tentar amenizar) as consequências das contradições do capital, especificamente aquelas explicitadas por Marx (2008) em sua obra O Capital. O estudo do Estado Social e do princípio socialdemocrata se baseia então em uma análise sobre o próprio papel do Estado frente às contradições internas do sistema social capitalista da qual ele é parte.
Assim, recorremos às análises econômicas de Keynes em relação ao papel do Estado enquanto agente econômico fundamental e, indiretamente, às análises de Marx, apresentadas por Ivanete Boschetti em suas críticas ao Estado social enquanto fenômeno enfraquecedor das lutas trabalhistas revolucionárias.
Para tanto,
Cabe, desde logo, um registro de fundamental importância: designar de “Estado social” a regulação econômica e social efetivada pelo Estado no capitalismo tardio não significa atribuir ao Estado uma natureza anticapitalista, e menos ainda lhe atribuir qualquer intencionalidade de socializar a riqueza por meio de políticas sociais. Trata-se, ao contrário, de tentar lhe atribuir uma designação ou caracterização para demonstrar que o fato de assumir uma “feição” social por meio de direitos implementados pelas políticas sociais não retira do Estado sua natureza capitalista e nem faz dele uma instância neutra de produção de bem-estar. (Boschetti, 2016, p. 24).
Nesta primeira observação apresentada, Boschetti apresenta uma primeira ressalva de fundamental importância na análise deste tema. A interferência estatal na economia sob os princípios do Estado social, enquanto regulador das relações sociais capitalistas e garantidor de direitos sociais e do bem-estar, de forma alguma busca substituir sua natureza capitalista. Esta suposta mediação que faz o Estado frente às contradições imanentes entre capital e trabalho, apesar de fornecer estabilidade, maior igualdade social e desenvolvimento contínuo das forças produtivas, não pode superar as contradições das relações capitalistas de produção.
Seu surgimento é fruto de um evidente desgaste econômico e político em determinado e específico período histórico, onde se fez necessário “introduzir” o Estado para conter tais desgastes e enfraquecer movimentos revolucionários que se viam crescentes na época. Em outras palavras, acima de tudo, o Estado, tal como foi apresentado pelas correntes liberais e social-democratas, é incapaz de substituir e superar por completo as leis do mercado, como insistia Marx em seus trabalhos, mas está aliado a este na busca da constante reprodução ampliada do sistema e asseguração das relações de domínio social. E mais que isso: que o Estado se apresenta como agente econômico fundamental em tempos de crise, quando as contradições do capital se intensificam e se apresentam de forma desfetichizada. Ou seja, analisar o Estado, e o Estado Social especificamente, implica entender, antes de tudo, a possibilidade geral da crise capitalista.
Para Sawaya (2009),
A questão da superprodução foi central em Keynes, que apontou a crise como em parte o resultado de o capital não realizar o investimento necessário para manter o fluxo de acumulação dinâmico contínuo. Acreditava que, se os empresários mantivessem os investimentos crescentes, a crise não ocorreria. Percebia claramente que esse não é um processo automático e, além disso, ocorre por ondas cíclicas que podem desvincular a relação produção-consumo, criando incertezas e crises, rompimentos no fluxo. Acreditava que esses movimentos cíclicos poderiam e deveriam ser controlados para garantir o processo de acumulação contínuo. (p. 57).
E ao dizer que “[...] o ciclo de crescimento foi também resultado da criação do Estado de Bem-Estar Social nos países do centro como forma de dar garantia à realização do valor” (Sawaya, 2009, p. 59), recupera a ideia de que foi necessário uma nova dinâmica e organização do Estado na época para que se estabilizassem os mercados e se revertesse as expectativas dos agentes econômicos, dando assim, início à um novo ciclo de expansão da economia mundial, determinado pelas economias centrais da Europa e Estados Unidos.
Não cabe aqui negar a importância do Estado Social neste contexto de recuperação econômica, na criação de direitos públicos básicos e de tentativas de distribuição de renda ocorrido nos anos seguintes à Guerra. Mas, nos cabe entender que este processo se limitou a um contexto de recuperação econômica do grande capital, conciliando minimamente a retomada do crescimento com as pautas dos movimentos revolucionários e socialistas da época. O Estado Social se apresentou como “encerrando” uma disputa de cabo de guerra entre o capital e a classe trabalhadora, contudo, claramente garantindo o pleno desenvolvimento do primeiro em troca de “migalhas necessárias” para conter o segundo.
Assim, os acordos e as novas formas de organização do pós-guerra recolocam o processo de acumulação ampliada em novas bases que permitiram ao capital retomar sua trajetória de acumulação. A institucionalização do Estado de Bem-Estar Social passou a garantir que parte do valor excedente criado pelo próprio trabalho seja, até certo ponto, “desviado” da acumulação ampliada do capital, diminuindo o impacto da contradição antes exposta, convertendo-o em renda aos trabalhadores, de modo a garantir a realização (venda da mercadoria). Da mesma forma, forças sociais organizadas como sindicatos etc. serviam para garantir certa participação dos salários na renda. (Sawaya, 2009, p. 60).
Depender do Estado, contudo, para mediar a luta de classes tem se mostrado para a classe trabalhadora um risco enorme. Uma vez dentro de cenários de recuperação do capital, se viram os constantes “ataques” a este processo de mediação. Ou melhor dizendo, as necessidades do capital em relação ao Estado Social se enfraqueceram nas décadas de 1970 e 1980 com o movimento econômico da época, dando espaço ao pensamento neoliberal, retirando qualquer noção de poder público e enfraquecendo os direitos conquistados/cedidos aos movimentos trabalhistas que vigoraram no período anterior.
Antes de nos aprofundar na crítica marxista ao Estado Social e suas implicações para a luta da classe trabalhadora contra a opressão social e exploração do trabalho, devemos retomar alguns apontamentos teóricos feitos por Keynes na Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda para demonstrar que desde 1936, o próprio autor, cujas ideias são a base para o pacto social-democrata e para o desenvolvimento teórico do Estado Social, fortemente defendidas até hoje por movimentos de esquerda “revolucionária” no mundo todo, já deixava explícito o caráter meramente reformista do Estado e sua íntima relação com a estabilização (e crescimento constante) do capital.
Embora tenhamos apenas no capítulo XXIV da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (Keynes, 1985) uma exposição mais detalhada sobre a possível influência que o Estado pode exercer na economia enquanto agente interventor, ao longo de sua obra Keynes já apresenta alguns elementos de reflexão para desenvolver em momento posterior as funções do Estado. Sem nos prolongar nos detalhes teóricos da Teoria Geral, ao questionar a Lei de Say o autor nos apresenta o problema fundamental da demanda efetiva presente na economia capitalista e entende este como um dos principais fatores da crise econômica; e é a partir deste conceito que poderemos entender como o autor pensa o papel do Estado.
Resumidamente: uma vez que, para os capitalistas, os níveis marginais de eficiência do capital se mostram muito baixos (principalmente comparados com a taxa de juros), estes se sentem desestimulados a investir, contendo assim a renda agregada. Assim, quando os capitalistas não possuem expectativas favoráveis de venda dos seus produtos, o investimento é contido, sendo capaz de gerar um estado de crise econômica. Para que seja possível reverter este cenário desfavorável, Keynes entende que é de fundamental importância uma reversão das expectativas para que se retomem os níveis de investimento, recuperando assim a demanda efetiva, e com ela, níveis de renda, empregabilidade e bem-estar geral para a classe trabalhadora; assim como os níveis de lucratividade e de acumulação da classe empresária fundados em níveis de consumo maiores. Contudo, cético em relação ao êxito das políticas monetárias por si só, o autor apresenta uma possível alternativa econômica que se materializa através de uma ação ativa do Estado, que aqui se apresenta como um agente econômico autónomo.
Nas palavras de Keynes (1985):
Encontrando-se o Estado em situação de poder calcular a eficiência marginal do capital dos bens de capital a longo prazo e com base nos interesses gerais da comunidade, espero vê-lo assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta dos investimentos, ainda mais considerando-se que, provavelmente, as flutuações na estimativa do mercado da eficiência marginal dos diversos tipos de capital [...] serão demasiado grandes para que se possa compensá-las por meio de mudanças na taxa de juros. (p. 119).
Ou seja, não podendo depender exclusivamente de políticas monetárias para que se determine baixos níveis de taxas de juros, incentivando assim os capitalistas a se dedicarem ao investimento produtivo de seus capitais, o autor apresenta a importância das políticas fiscais, fazendo com que o Estado assuma uma “responsabilidade direta nos investimentos”. Esta prática do Estado enquanto forte agente interventor no que diz respeito ao investimento produtivo se coloca como prática fundamental na possibilidade de reverter recessões econômicas e de resgatar as economias em crises (basicamente, o Estado se apresenta aqui como responsável por gerar medidas econômicas anticíclicas). Em momentos de crise em que se tem baixa demanda efetiva e baixas taxas de investimento (resultando assim em baixos níveis de emprego), o Estado deve atuar firmemente na tentativa de reverter as expectativas pessimistas dos agentes, investindo na economia buscando retomar níveis adequados de emprego, demanda e renda para que se possa restabelecer os níveis de eficiência marginal do capital dos capitalistas privados e retomar assim o processo econômico crescente.
Ao desenvolver mais diretamente esta questão no que diz respeito à política fiscal: A crença tão generalizada de que os impostos sobre heranças são responsáveis pela redução da riqueza de capital de um país reflete a confusão que reina entre o público neste aspecto. Supondo que o Estado aplique o produto destes impostos em suas despesas comuns, de modo que os impostos sobre a renda e o consumo se reduzam ou anulem correspondentemente, é naturalmente inegável que uma política fiscal de altos impostos sobre heranças faz aumentar a propensão da comunidade a consumir. Mas, como o aumento da propensão habitual a consumir contribui em geral (isto é, excetuando as condições de pleno emprego), para elevar o incentivo ao investimento, a conclusão que daí se tira é quase sempre oposta. (Keynes, 1985, p. 253-4).
A necessidade de uma política fiscal progressista e expansionista deve ser tida como uma ferramenta à disposição da sociedade como um todo para que se amenize os impactos sociais e econômicos durante os períodos de recessão. Estas políticas possuem então um caráter anticíclico, pois são elas que podem proporcionar o incentivo necessário para a retomada do investimento produtivo quando o capital privado se mostra incapaz de fazê-lo.
O autor, contudo, ao chamar atenção para os altos níveis de desemprego apresentados durante a década de 1930 e buscando apresentar uma saída alternativa para momentos de crises capitalistas, desenvolve esta ideia com certa cautela e de forma bastante defensiva. Percebendo as inconsistências internas do sistema ao manter ritmos contínuos de crescimento econômico, Keynes desenvolve seu último capítulo da Teoria Geral, como buscamos mostrar, insistindo na atuação direta do Estado, porém, com certas ressalvas. Vale destacar aqui que além de sua análise geral da sociedade capitalista e da sua dinâmica de (re)produção, a defesa da intervenção do Estado na Teoria Geral não pode ser confundida com a intervenção presente na URSS.
Diz Keynes (1985):
Do meu ponto de vista, creio haver justificativa social e psicológica para grandes desigualdades nas rendas e na riqueza, embora não para as grandes disparidades existentes na atualidade. [...] A tarefa de modificar a natureza humana não deve ser confundida com a de administrá-la. Embora na comunidade ideal os homens possam ser acostumados, inspirados ou ensinados a desinteressar-se do jogo, a sabedoria e a prudência da arte política devem permitir a prática do jogo, embora sob certas regras e limitações, em se considerando que o homem comum, ou mesmo uma fração importante da comunidade, é altamente inclinada à paixão pelo lucro. (p. 254)
E continua,
Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada. Mas, fora disso, não se vê nenhuma razão evidente que justifique um Socialismo do Estado abrangendo maior parte da vida econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. (p. 256).
Aqui Keynes busca deixar claro aquilo que diz respeito ao papel do Estado. Não cabe a este modificar a natureza humana, mas sim, administrá-la. Conter nos agentes a paixão pelo lucro de modo nenhum significa acabar com o conceito de lucro. Ver o Estado enquanto possível agente ativo na economia também não significa, e nem pode significar, a substituição do setor privado. O Estado, para Keynes, deve se apresentar como mero regulador das distorções internas do mercado, mas sempre garantindo o processo de reprodução do capital baseado na acumulação da propriedade privada.
Por isso, enquanto a ampliação das funções do governo, que supõe a tarefa de ajustar a propensão a consumir com o incentivo para investir, poderia parecer a um publicista do século XIX ou a um financista americano contemporâneo uma terrível transgressão do individualismo, eu a defendo, ao contrário, como o único meio exequível de evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e como condição de um bem-sucedido exercício da iniciativa individual. [...] Os regimes autoritários contemporâneos parecem resolver o problema do desemprego à custa da eficiência e da liberdade. É certo que o mundo não tolerará por muito mais tempo o desemprego que, à parte curtos intervalos de excitação, é uma consequência e na minha opinião uma consequência inevitável do capitalismo individualista do nosso tempo. Mas pode ser possível curar o mal por meio de uma análise correta do problema, preservando ao mesmo tempo a eficiência e a liberdade. (Keynes, 1985, p. 257).
Embora Keynes apresente uma grande ruptura com relação às principais teorias econômicas da época, de longe suas críticas ao modo de produção capitalista buscam superar suas contradições internas. Suas análises estabelecem o início de um novo paradigma teórico, mas sob hipótese alguma possuem perspectivas de alterações estruturais dos problemas do capitalismo. Ao contrário. Buscam administrar, através do Estado, na aparência, tais contradições na tentativa de evitar que estas se manifestem de forma mais intensa, garantindo assim duas coisas fundamentais e não necessariamente dissociáveis. A primeira delas: conter o avanço de movimentos revolucionários da classe trabalhadora em um contexto de avanço da desigualdade imanente e fundamental para o sistema, garantindo intacto o princípio da propriedade privada. A segunda, como consequência da primeira, é garantir a contínua reprodução e valorização do capital privado. Em relação a estes dois pontos tentaremos trabalhar na seção seguinte, as contradições do Estado Social, tanto no período de hegemonia do pensamento “keynesiano”, quanto na defesa contemporânea deste mesmo fenômeno por movimento de esquerda, sobretudo na América Latina.
O mérito de Keynes consiste em identificar com precisão a lacuna cronológica presente na divisão social do trabalho capitalista (entre produção e consumo) e as implicações que esta lacuna leva ao “circuito” econômico desta divisão social do trabalho: a saber, as crises econômicas estruturais. Além disso, Keynes também identifica que essa divisão social do trabalho se manifesta como uma relação de poder hierárquica entre classes sociais. Sua limitação consiste em identificar o Estado a partir da teoria liberal como um agente neutro e também em defender a acumulação privada de riqueza, garantindo a reprodução das relações de poder postas pela sociabilidade capitalista.
Ao entender a separação da sociedade capitalista na classe que organiza o investimento produtivo e outra que depende da empregabilidade, vemos em Keynes uma breve noção de classes sociais. Ainda que estritamente limitada à análise econômica, está claro que em sua teoria existe uma relação de poder envolvida na formação social, na qual os trabalhadores dependem da decisão dos capitalistas de realizar investimentos para que possam assegurar tanto suas condições de vida por meio do consumo alcançado pela renda proporcionada pelo salário, como também o funcionamento do sistema social. Nas citações apresentadas, essa dinâmica econômica que vem da propriedade privada dos meios de produção e do exercício da individualidade, levando à paixão pelo lucro, Keynes parece considerar a dimensão política deste processo um detalhe. A dimensão política fica restrita ao seu entendimento do Estado como a encarnação do político, sem aprofundar nas implicações de exploração e dominação que se encontram mascaradas pelo movimento econômico. Sua noção de classes se aproxima de um entendimento sociológico, mas que está fundado no falso pressuposto da inclinação pelo lucro como fenômeno natural do ser humano.
Sabemos que, por sua vez, os capitalistas dependem da existência de uma massa de trabalho ativa para compor o processo produtivo. Nesse momento, podemos nos aproximarmos de Marx ao entender a dependência que tem o capital em relação ao trabalho. Entendemos que em Marx, especificamente em sua obra O Capital, as classes se apresentam como uma encarnação concreta da contradição material que existe na sociedade capitalista, fundada na apropriação do trabalho alheio. Essa apropriação é o fundamento da exploração e da dominação social quando aqueles despossuídos de meios de produção não tem outra escolha se não a de alienar-se frente a este processo.
A discussão aqui passa por complementar o entendimento das “classes sociais”, que Keynes apresenta como uma relação econômica dos momentos necessários para a produção e circulação capitalistas, com a dimensão política que Marx enfatiza como uma relação de dominação social. A liberdade que Keynes diz haver sido abandonada em prol da empregabilidade presente na URSS faz referência à liberdade liberal, onde este conceito possui uma existência estritamente formal. Se voltamos em Marx, fica claro que seu entendimento de liberdade está mais próximo de um processo de emancipação humana, que busca superar a relação de dominação social existente na sociedade capitalista, passando assim pela superação da separação social entre classes. Ou seja, entendendo o conceito de classe social a partir da relação entre apropriação e expropriação do trabalho humano, o fim da exploração levaria necessariamente ao fim desta distinção.
Esse tema é fundamental para que se possa localizar a discussão do Estado em Keynes: como vimos, o Estado tem um papel de potencial agente econômico, mas que deve limitar sua ação política à administração pública e organizar o bem-estar coletivo. Em sua teoria, algumas questões ficam abertas: o que é o Estado? A política é a mesma coisa que a administração do setor público? Por que o fenômeno político assume uma forma institucionalizada? A liberdade assegurada pelo Estado está restringida à liberdade de consumir? O Estado pode assegurar uma reprodução ampliada contínua da sociedade? O capital pode ser regulado? Nos cabe analisar algumas contradições existentes nessa proposta keynesiana frente à possibilidade de superação do capital.
A partir das observações feitas por Keynes sobre o papel do Estado, que viriam a ser, alguns anos depois da publicação da Teoria Geral, fundamentos básicos da criação do conceito de Estado Social em diversos países, poderemos dar continuidade e entrar na análise das contradições presentes nesta lógica. De antemão, cabe mais uma vez destacar, como tentamos expor de forma sucinta anteriormente, que esta contradição está pautada na relação entre a reprodução do capital e o processo de luta de classes sendo “mediada” pelo Estado, no caso, pelo Estado Social. Vejamos isto mais de perto.
Entendemos que a tentativa de garantir uma contínua reprodução ampliada do capital (buscando sempre contornar as manifestações das contradições e evitar momentos de crise) e o processo de luta de classes, no intuito de superar de fato a possibilidade universal destas contradições, são movimentos antagônicos e indissociáveis. O processo de luta de classes se intensifica com as manifestações concretas das contradições do capital, como pôde ser visto, por exemplo, na década de 1930. Neste sentido, devemos notar o quão fundamental foi o processo de consolidação do Estado Social, garantindo direitos públicos básicos e assegurando políticas sociais para a classe trabalhadora na época.
Uma vez assumindo realizar as mediações das relações sociais, o Estado Social, manifestando-se como acima das classes, foi capaz de amenizar momentaneamente esta intensa disputa entre o capital e o trabalho. Como tentamos apresentar através de Keynes, o Estado Social de meados do século XX obrigou a classe capitalista a renunciar a uma pequena parcela da sua riqueza, para ser capaz de gerar aumentos na propensão marginal a consumir da sociedade como um todo, retomando níveis adequados de eficiência marginal do capital, gerando investimento, emprego e renda. Em outras palavras, o Estado Social foi capaz de tomar à frente o processo de reprodução ampliada em um momento que as taxas de lucro se encontravam em queda.
Este processo de fato se mostrou como um momento de extrema relevância e ganhos socioeconômicos dos trabalhadores. Contudo, como destaca Boschetti (2016), não foi capaz de superar a desigualdade. A igualdade no capitalismo é (e só pode ser) uma garantia formal. A desigualdade constitui o fundamento básico da possibilidade geral do capital. O que fez o Estado Social foi tentar mascarar as contradições, uma vez que o mercado se encontrava em desmoronamento. “Apesar das divergências teóricas e políticas que podem ser observadas entre pesquisadores dessa temática, não há dissenso quanto ao reconhecimento que a articulação das políticas sociais em um sistema integrado de regulação social e econômica, comumente designado de “sistema de proteção social”, passa a ser um componente fundamental das medidas anticrise após a crise de 1929” (Boschetti, 2016, p. 27).
Passa então a ser garantido este “sistema de proteção social” através do “pacto social-democrata”. Esta foi a estratégia organizada na Europa ocidental na época como a conciliação entre os capitalistas e os movimentos trabalhistas, materializado na figura “impessoal” do Estado, que passa aqui a assumir um caráter social. “Este sistema de proteção social se desenvolve largamente após 1945, estruturados sobre os pilares da regulação do mercado pelo Estado, assentados na garantia de oferta de serviços e demanda efetiva de consumo, sendo as políticas sociais uma importante estratégia de manutenção do ‘pleno’ emprego e ampliação do consumo” (Boschetti, 2016, p. 27).
O que voltamos a insistir é que este processo, aceito pelos trabalhadores da época, mas também defendidos até hoje por movimentos que se dizem revolucionários (não só no Brasil, mas em toda América Latina e no mundo), já mostrava sua natureza capitalista e pró-mercado desde quando foi descrito, mesmo que incompletamente por Keynes. O surgimento do conceito do Estado Social, baseado nas ideias deste autor, desde o início, nunca se apresentou como possibilidade real de superação das contradições e da relação de exploração capitalista. Suas limitações estavam postas desde seu surgimento.
Visto em determinado período histórico o esgotamento do processo de reprodução ampliada do capital, tivemos o Estado intervindo, assumindo a frente deste processo. Ao assegurar direitos sociais fundamentais como contrapartida a uma retomada gradual do crescimento e, ao mesmo tempo, sob um contexto de luta de classes, o Estado Social de nenhuma forma indicou qualquer possibilidade de se colocar acima do mercado de forma permanente, e mais do que isso, possibilitou uma momentânea desmercantilização dos chamados direitos sociais, mas nunca a desmercantilização das próprias relações sociais capitalistas.
Nas palavras de Marx (2012) ao criticar o Programa de Gotha, o autor diz que:
O lugar da luta de classes existentes é tomado por uma fraseologia de escrevinhador de jornal a questão social, a cuja solução se conduz. A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da subvenção estatal, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção criadas por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno de presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia. (p. 40).
No século XIX Marx já apontava as contradições presentes dentro da dinâmica do Estado. Claro está a polêmica dentro do marxismo que acusa Marx de não haver apresentado uma teoria sistemática do Estado capitalista, ainda assim, não se deve imaginar que o Estado esteja acima das classes e busque resolver as contradições presentes, mas que este esteja subordinado aos interesses da classe trabalhadora e que tenha sua forma, eventualmente, extinguida. Afinal, “tomar o ‘Estado livre’ não é modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. [...] A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade, em um órgão totalmente subordinado a ela” (Marx, 2012, p. 42). Uma vez libertados da condição de súditos, livres da relação de exploração, o próprio Estado perde sua razão de ser: sua objetividade como princípio político organizador da dominação social indireta.
Voltamos então a denunciar o caráter meramente reformista do Estado Social empregado por diversos movimentos políticos há décadas. Desde sua origem a garantia de direitos sociais por parte do Estado estão intimamente ligados com a própria necessidade de reprodução do capital. Este movimento dialético apresentado se configura, na verdade, com o Estado sob um contexto concreto, determinado na aparência pela luta de classes, mas sempre garantindo e reproduzindo sua natureza capitalista, buscando garantir a valorização contínua do valor a partir da propriedade privada dos meios de produção, mantendo intacto a fundamento social da exploração do trabalho alheio.
Cabem então, aos movimentos revolucionários, que de fato buscam superar as contradições da sociedade capitalista e dominação social, renunciar à histórica crença teoricamente infundada no Estado Social enquanto apaziguador da luta de classes e ver neste um verdadeiro entrave para que se supere a relação de exploração do trabalho baseado na mercantilização das relações sociais. Os movimentos de esquerda no mundo, na busca de assegurar benefícios à classe trabalhadora, devem superar a ideologia do Estado Social enquanto mediador da luta de classes e entender suas limitações no processo de emancipação humana. Entendemos a importância que teve o Estado Social e as políticas públicas para melhorias de vida, criação de bem-estar e redução das desigualdades no século passado. Contudo, deve-se entender e incorporar às pautas a própria superação do Estado como algo necessário para a superação do próprio capital e sua relação de dominação. Afinal, não se pode confundir redução das desigualdades com a condição geral de superação das mesmas.
A maneira de conclusão, queremos chamar atenção para os limites que apresenta o Estado Social e a socialdemocracia como seu exercício, determinados pela própria natureza capitalista e contraditória do Estado capitalista em geral. O exercício político de um governo ou outro não é capaz, por definição, de alterar esta natureza exploratória do Estado como princípio político capitalista da dominação indireta. Os movimentos de esquerda progressista na América Latina, nas últimas décadas, após os grandes regimes militares de fins do século passado, tentaram reproduzir uma realidade social incompatível com a função que estes países desempenham na divisão internacional do trabalho e pagaram caro por isso.
Os golpes de Estado no Brasil contra Dilma Roussef e o Partido dos Trabalhadores; na Bolívia contra Evo Morales; No Peru contra Castillo; a derrota da constituinte popular chilena com Boric; os boicotes empresariais contra Kirchner e Fernandez na Argentina; até mesmo o golpe de Estado no Equador entre tantos outros: todos são reflexos da ofensiva do capital contra qualquer possibilidade de resistência popular que se dão no âmbito político institucional. As estratégias destes governos de esquerda para organizar a transformação social por meio do Estado como mediador da conciliação de classes resultou no enfraquecimento da organização das massas populares ao largo de todo o continente, escancarando suas veias abertas e abrindo caminho para a agressividade do conservadorismo capitalista que vem tomando rumos neofascistas.
Encerramos este ensaio reproduzindo algumas palavras do jurista soviético Pachukanis quando nos diz que: “a social-democracia é a ala moderada do fascismo, [...] o êxito do fascismo está ligado ao trabalho da social-democracia, [...] a social-democracia mantém determinadas posições para apoiar a ofensiva de combate aberto contra a classe trabalhadora, que conduz ao fascismo. Nessa situação, o fator subjetivo é a nossa luta, a luta do proletariado é decisiva. Nessa luta é importante desmascará-los, é importante golpear ideologicamente os dois pilares nos quais, agora, se apoia o domínio do capital” (Pachukanis, 2020, p. 84).
A luta das classes oprimidas se encontra mais necessária que nunca frente a ofensiva neofascista; e passa por enfrentar as formas diretas, mas também as formas indiretas, do exercício do poder capitalista, o Estado entre elas.
Ávalos, G. (2021a). Ética y Política em Karl Marx. Editorial Terracota.
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REVISTA TLATELOLCO: DEMOCRACIA DEMOCRATIZANTE Y CAMBIO SOCIAL, Vol. 1, Núm. 2, enero – junio 2023, es una publicación semestral, editada por la Universidad Nacional Autónoma de México, Ciudad Universitaria, Alcaldía Coyoacán, Ciudad de México, C.P. 04510, a través del Programa Universitario de Estudios sobre Democracia, Justicia y Sociedad, Av. Ricardo Flores Magón No. 1, Piso 13, colonia Nonoalco Tlatelolco, Alcaldía Cuauhtémoc, C.P. 06900, Ciudad de México, Tel. 5551172818 ext. 49787, URL: https://puedjs.unam.mx/revista_tlatelolco/, correo electrónico: revistatlatelolco@puedjs.unam.mx. Editor responsable: John Mill Ackerman Rose. Reserva de Derechos al Uso Exclusivo de Título: 04-2022-111112043400-102, ISSN: en trámite, ambos otorgados por el Instituto Nacional del Derecho de Autor. Responsable de la última actualización de este número: John M. Ackerman Rose, Av. Ricardo Flores Magón No. 1, Piso 13, colonia Nonoalco Tlatelolco, Alcaldía Cuauhtémoc, C.P. 06900, Ciudad de México, Tel. 5551172818, ext. 49787. Fecha de última modificación: 28 de febrero de 2023.
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